O pensamento vivo de Che Guevara

A vida política de Che foi curta. Em 1955, encontrou com os revolucionários cubanos no México e em 1967 foi assassinado na Bolívia. Portanto, foram pouco mais de 10 anos de militância revolucionária. Uma boa parte deste período passou diretamente envolvid

Ao contrário de Lênin, Trotsky e Mao, ele produziu poucas obras teóricas. Seus escritos, em geral, foram sistematizações da experiência da luta guerrilheira em Cuba e tentativas de generalizações desta experiência para os outros países da América Latina. Estes, por sinal, foram seus textos mais divulgados e, acredito, sejam hoje, os mais problemáticos. No entanto, Guevara escreveu também sobre economia (especialmente quando esteve à frente dos cargos de Ministro da Indústria e de presidente do Banco de Cuba), sobre o Estado, sobre a ideologia socialista e a construção do “homem novo”. Estes, acredito, sejam os seus textos mais ricos, e dos quais poderão ser extraídos os maiores ensinamentos para os trabalhadores e a juventude socialista.


 


A guerra de guerrilhas – sistematização e generalizações da experiência da revolução cubana


 


Che foi autor de uma série de textos tratando da sistematização da experiência da luta guerrilheira em Cuba e buscando generalizar esta experiência para outros países do continente. Os pontos positivos desses textos são os que se referem: 1º) ao papel da luta revolucionária no processo de transformação social na América Latina; 2º) a localização do inimigo central dos povos do mundo: o imperialismo norte-americano; e, 3º) a importância do internacionalismo proletário, especialmente da solidariedade latino-americana.


 



Sobre a possibilidade de mudança do regime nos marcos da legalidade burguesa, através das eleições, ele afirmou: “Quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo sustentado por ampla votação popular e resolve em conseqüência disto iniciar grandes transformações sociais que constituem o programa pelo qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses das classes reacionárias desse país? O Exército não tem sido um instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico imaginar que o exército tomará partido por sua classe e entrará em conflito com o governo eleito? Em conseqüência pode ser derrubado por meio de um golpe de Estado e aí recomeça de novo a velha história”.


 



Che escreveu estas palavras em 1962 no momento em que o movimento comunista internacional estava sendo atingido pelo reformismo que emanava da própria URSS, dirigida por Kruschev. No Brasil o PC Brasileiro advogava a via pacífica para conquista de um novo regime democrático e nacionalista e defendia o caráter democrático das forças armadas. Nos anos seguintes se confirmaram, de maneira trágica, no Brasil, as teses defendidas por Guevara: em 1964 um golpe militar derrubou o governo democrático de Goulart no Brasil. Em 1973, outro golpe militar derrubou o governo socialista de Salvador Allende no Chile. Na segunda metade da década de 1970 a grande maioria dos países da América Latina estava dominada por ditaduras militares sanguinárias, apoiadas pelos EUA.


 



No entanto, é bom ressaltar que Guevara, em várias passagens de sua obra, procurou não absolutizar o método da luta armada, particularmente a guerrilha rural, e levantou a necessidade de utilização de outros métodos de luta. Os revolucionários, afirmou ele, “não podem prever de antemão todas as variantes táticas a serem utilizadas no processo de sua luta por um programa libertador. A qualidade de um revolucionário se mede por sua capacidade de encontrar táticas adequadas a cada mudança de situação, em ter sempre em mente as diversas táticas possíveis e explorá-las ao máximo. Seria um erro imperdoável descartar, por princípio, a participação nos processos eleitorais. Em determinado momento ele pode significar um avanço no programa revolucionário (…)”


 



Apesar dessa afirmação ele mesmo tendeu, em várias passagens, a subestimar a luta institucional por reformas nos marcos do capitalismo. Referindo-se à política adotada pela maioria dos partidos de esquerda na América Latina afirmou: “Nos países onde esses erros tão graves são cometidos, o povo mobiliza suas legiões, ano após ano, para conquistas que lhe custam imensos sacrifícios e que não têm o mínimo de valor. São apenas colinas dominadas pelo fogo serrado da artilharia inimiga. O nome delas são parlamento, legalidade, greve econômica legal, reivindicação por aumento salarial (…) E o pior de tudo é que para ganhar estas posições têm que intervir no jogo político do Estado burguês e, para obter autorização de entrar neste jogo perigoso, é preciso demonstrar que atuará dentro dos estritos limites da legalidade (…)”


 



Guevara nesse trecho parece não reconhecer a importância das lutas realizadas nos marcos da legalidade e da institucionalidade burguesa, como momentos importantes no processo de acumulação de forças na construção de uma alternativa revolucionária. No entanto, as eleições e as greves, quando bem utilizadas, podem ser importantes instrumentos na educação política das massas trabalhadoras. Todas as conquistas populares, por menores que sejam, podem ter um valor inestimável quando elas educam as massas para a necessidade de sua organização e da luta. A própria história da revolução cubana é a comprovação viva desta tese leninista.


 



A fórmula apresentada por Guevara chegou a um impasse quando ele agregou a constatação de que nos países onde existissem governos eleitos pelo voto popular, e que se mantivesse certa aparência de legalidade, “o surgimento do foco guerrilheiro seria impossível por não se terem esgotado todas as possibilidades da luta parlamentar”. Mas, se nas democracias burguesas as táticas guerrilheiras já estariam de antemão excluídas, só restaria a utilização de métodos não revolucionários, participação nas eleições, nos sindicatos, nas greves econômicas ou políticas.


 



O ambiente urbano para Guevara era um espaço essencialmente não-revolucionário. O processo de industrialização e de concentração urbana passava a ser considerados fatores negativos no processo de ruptura com o imperialismo. Afirmou Guevara: “Os países nos quais existem altas concentrações populacionais em grandes centros, devido a um processo inicial de industrialização, têm mais dificuldades em preparar a guerrilha. A influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente”. O ambiente urbano reforçaria o processo de “institucionalização” das esquerdas, propiciaria a proliferação de idéias reformistas que advogavam que “possíveis aumentos quantitativos de representantes revolucionários no parlamento” levariam a uma “mudança qualitativa” no regime social e político. Por isto, continuou ele, “mesmo levando em consideração países que o predomínio urbano é muito grande, continuamos achando que o foco central político de luta deve desenvolver-se no campo.”


 



O modelo de revolução de Guevara dava muita ênfase ao “foco guerrilheiro”, embora sua visão sobre qual seria o seu papel tivesse passado por importantes mudanças ao longo de sua obra. Depois de afirmar que “nem sempre devemos esperar que todas as condições para a revolução estejam dadas: o foco insurrecional pode criá-las”, ele precisa tal afirmação dizendo que: “naturalmente não pensamos que todas as condições para a revolução são criadas somente pelo impulso que lhe é dado pelo foco guerrilheiro. Sempre teremos que verificar se existem condições mínimas para o estabelecimento e a consolidação do primeiro foco. É importante destacar que a luta guerrilheira é uma luta de massa, é uma luta popular: a guerrilha, enquanto núcleo armado, é a vanguarda combatente do povo, sua grande força assentada na massa da população (…) Por isto temos que recorrer à guerra de guerrilha quando se tem o apoio majoritário da população (…) O guerrilheiro tem que contar com o apoio da população local. É uma condição sine qua non.” Em poucos anos Che e seus companheiros passariam, na prática, a subestimar a necessidade das condições objetivas e subjetivas para eclosão dos movimentos revolucionários, caindo assim em posições espontaneístas e voluntaristas.


 



A experiência da guerrilha boliviana revelou os limites de muitas das concepções defendidas pelos revolucionários cubanos, entre elas: a afirmação de que existiriam as condições objetivas para eclosão de uma revolução socialista em toda América Latina, cabendo apenas a ação enérgica de um pequeno grupo de revolucionários para se constituir as condições subjetivas. Nos seus últimos dias, Guevara escreveu: “Dia de angústia que em certo momento pareceu ser o nosso último dia (…) o exército está mostrando maior efetividade de ação, e a massa camponesa não nos ajuda em nada e se converte em delatores”. Eram 17 homens, mais do que se alojaram na Sierra Maestra, mas as condições eram-lhes completamente adversas. O camponês boliviano nada tinha a ver com o camponês cubano que Che descreveu em seu artigo “Cuba, exceção histórica?”. A realidade boliviana era completamente diferente da existente em Cuba no final da década de 50.


 



Se de um lado era correta a compreensão de Che de que a revolução deveria ser continental e isto teria levado a uma valorização do internacionalismo proletário, particularmente da solidariedade da luta hemisférica; de outro, ela acabou levando à construção de uma tática esquemática e anti-histórica: uma espécie de modelo único de revolução latino-americana. Os revolucionários cubanos não conseguiram compreender que, apesar da semelhança de muitos de seus problemas, os países latino-americanos possuíam profundas diferenças econômicas, sociais, políticas e culturais. As revoluções não poderiam simplesmente pular as fronteiras nacionais.


 


Como afirmou, em novembro de 1967, um documento do PCdoB: “A revolução será feita em cada país pelo seu próprio povo. O problema nacional é um dos fatores básicos da luta emancipadora nas nações oprimidas pelo imperialismo. Todo país tem suas peculiaridades, sua formação histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes. Todo povo terá que encontrar as formas específicas de abordar a revolução”. A verdadeira revolução não poderia ser importada ou exportada.


 


 



Guevara acertou na compreensão de que os Estados Unidos eram o principal inimigo dos povos latino-americanos, no entanto a tática elaborada, particularmente após 1965, não correspondeu a essa visão. Ele partiu da conclusão de que o caráter da revolução em todos os países da América Latina seria socialista e passou, sem a mediação necessária, a construir uma tática assentada em bandeiras socialistas e frentes classistas.


 



Esta era, em certo sentido, uma negação da própria experiência revolucionária cubana. Fazendo uma análise do processo revolucionário cubano, Guevara chegou a afirmar: “Não podemos considerar como excepcional o fato de a burguesia, ou pelo menos boa parte dela, se mostrar favorável à guerra revolucionária contra a tirania (…) E, se levarmos em consideração as condições em que se deu a guerra revolucionária e a complexidade das tendências políticas opostas à tirania, não podemos tampouco estranhar a atitude neutra ou pelo menos não diretamente ofensiva de certos elementos latifundiários frente às forças insurrecionais”.


 



Continuou Guevara, “é compreensível que a burguesia nacional, estrangulada pelo imperialismo e a tirania (…) visse com bons olhos esses jovens rebeldes das montanhas castigando o exército de mercenários, braço armado do imperialismo. Foi assim que forças não-revolucionárias ajudaram de fato a facilitar o caminho do advento do poder revolucionário.” Estas frases foram escritas em 1962, poucos anos após a revolução vitoriosa.


 



A partir da experiência histórica da Revolução Cubana, o PCdoB chegou a uma conclusão bastante diferente: “Para lutar conseqüentemente contra o domínio dos Estados Unidos nos países latino-americanos e em todo o mundo é preciso adotar uma política capaz de mobilizar o máximo de forças contra esse inimigo (…). Quando se coloca, na atual etapa da luta, o socialismo como objetivo imediato, na prática restringe-se o campo das forças revolucionárias e amplia-se o do imperialismo (…). O exemplo de Cuba mostra que não foi com bandeiras socialistas que ali se iniciou e se tornou vitoriosa a revolução”. Na verdade, as bandeiras que unificaram o povo para a derrubada de Batista foram fundamentalmente democráticas e nacionais. A revolução radicalizou-se e assumiu seu caráter socialista em 1961, após a malograda tentativa imperialista de invasão da Baia dos Porcos.


 



Guevara e os problemas da transição socialista
 


Após a revolução, Guevara assumiu um posto no governo cubano como diretor do setor industrial do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA); em 18 de novembro de 1959 foi indicado para a presidência do Banco Nacional de Cuba e, por fim, para dirigir o Ministério da Indústria. Guevara se tornou assim o principal responsável pela direção dos assuntos econômicos do novo poder popular; e justamente ele, um médico, que jamais estudara seriamente economia. A primeira medida de Che, à frente do Banco de Cuba, foi baixar o seu próprio salário de cinco mil para mil e duzentos pesos.


 



Em 1960 viajou, pela primeira vez, para os países socialistas com os quais assinou inúmeros tratados comerciais. Guevara foi duramente criticado pelos norte-americanos. Naquele momento o governo de Fidel ainda não havia se decidido claramente pela via do socialismo – afirmava-se apenas como defensor de uma via de tipo terceiro-mundista.


 



O governo revolucionário, desde o primeiro dia, buscou o caminho da nacionalização das empresas estratégicas. A maioria dos bancos, das refinarias, das empresas importadoras e exportadoras era norte-americana e foi atingida diretamente pelas medidas nacionalistas de Fidel e Che. Em 8 de janeiro de 1961 os EUA romperam relações diplomáticas com Cuba e, em 17 de abril, apoiaram a invasão da Baia dos Porcos por mercenários cubanos. Depois destes acontecimentos Fidel se declarou marxista-leninista e que a revolução cubana passaria a seguir a trilha do socialismo. Reforçou-se então a aproximação com a URSS e os países do leste europeu.


 


 


Desenvolvimento industrial e estímulos morais


 


 


No início da década de 1960 estabeleceu-se uma rica polêmica sobre quais seriam os caminhos para reestruturar a economia da nova Cuba que começava a seguir as trilhas do socialismo. De um lado ficou Guevara e, de outro, os economistas soviéticos e seus aliados em Cuba, os antigos membros do Partido Socialista Popular (comunista).
Guevara estava convencido que era preciso estabelecer o planejamento econômico e que este deveria ter como centro a industrialização e a diversificação da economia cubana. No seu plano quadrienal para o desenvolvimento do país pretendeu aumentar o ritmo do processo de industrialização, reduzir a importância da monocultura açucareira no conjunto da economia, estatizar as grandes empresas e limitar as importações de manufaturados.


 



Os soviéticos, por sua vez, não viam razão para que Cuba abandonasse a monocultura de açúcar, afinal esta era a sua principal atividade econômica. Eles se propunham a comprar toda produção de açúcar cubano e fornecer as mercadorias industrializadas que os cubanos necessitavam. Segundo os soviéticos, deveria ser estabelecida uma relação de complementaridade entre a economia cubana e as economias do leste europeu e da URSS. Uma espécie de divisão internacional do trabalho socialista, copiada do capitalismo. A proposta, em curto prazo, parecia bem compensadora para os cubanos. À longo prazo teria graves conseqüências.


 



As concepções de Che já poderiam ser encontradas em palestra que fez logo no início da revolução. Declarou ele: “todos estes conceitos de soberania política, de soberania nacional, são fictícios, se ao lado não existir a independência econômica (…) Fincamos os pilares da soberania política no dia 1 de janeiro de 1959, mas eles só estarão totalmente consolidados no momento em que conseguirmos a independência econômica absoluta (…) Ainda não podemos proclamar diante dos túmulos de nossos mártires que Cuba é independente economicamente. Não o pode ser enquanto um simples barco detido nos Estados Unidos provoque a paralisação de uma fábrica em Cuba, enquanto uma ordem qualquer de algum monopólio paralise aqui um centro de trabalho. Cuba será independente quando tiver desenvolvido todos os seus meios, todas as suas riquezas naturais e quando tiver (…) a certeza de que não poderá haver ação unilateral de nenhuma potência estrangeira para impedi-la de manter o ritmo de produção, de manter todas as suas fábricas produzindo o máximo possível dentro da planificação que estamos pondo em prática”. (Soberania Política e independência econômica – 20/03/1960)


 



Após a célebre decisão de Cuba seguir o caminho do socialismo, este país passou pelas mesmas dificuldades que haviam passado outras revoluções vitoriosas: a fuga dos gerentes, dos técnicos, dos engenheiros e até mesmo dos trabalhadores braçais especializados. Este quadro foi agravado pelo estado de desordem em que se encontrava toda economia. Era preciso pô-la para funcionar, era preciso aumentar a produtividade do trabalho, vencer o absenteísmo e a indolência dos trabalhadores, formas de resistências primárias à exploração capitalista, que se enraízam na sua consciência operária e que devem ser debeladas após a revolução socialista.


 



Visando vencer estes obstáculos Che lançou um amplo movimento de emulação do trabalho. O Ministro Che Guevara criou e liderou os batalhões de trabalho voluntário, participando do corte de cana e da construção de moradias operárias. Seguindo seu exemplo, estudantes, funcionários estatais e trabalhadores intelectuais realizavam atividades produtivas fora do seu tempo de trabalho ou estudo normal. Guevara queria utilizar a força do exemplo para incentivar os trabalhadores a aumentar a produção.


 



Aqui, novamente, se estabeleceu uma divergência entre Guevara e os especialistas soviéticos e vários membros do Partido em Cuba. Tratava-se de encontrar a melhor forma de incentivar o trabalhador a produzir mais e melhor. Toda a tradição de construção do socialismo na URSS e no Leste Europeu se baseava, fundamentalmente, na concessão de estímulos materiais para os trabalhadores que atingissem, ou ultrapassassem, as metas impostas pelos órgãos centrais de planejamento. Guevara não negava a necessidade de serem estabelecidos estímulos materiais durante a primeira fase de construção do socialismo, mas acreditava que o movimento de emulação não devia se assentar principalmente sobre esses estímulos materiais, como havia ocorrido na URSS.


 



Afirmou Guevara: “Não negamos a necessidade objetiva do estímulo material, mas estamos relutantes em utilizá-lo como alavanca impulsora fundamental. Consideramos que, em economia, este tipo de alavanca se torna rapidamente uma categoria autônoma e chega a impor rapidamente sua própria força nas relações entre os homens. Não devemos esquecer que ele provém do capitalismo e está destinado a morrer no socialismo”.


 



Criticando os defensores do modelo de emulação de tipo soviético, afirmou: para eles “o estímulo material direto, projetado no futuro e acompanhando a sociedade nas diversas etapas da construção do comunismo, não se contrapõe ao 'desenvolvimento' da consciência, enquanto para nós, sim; é por isso que lutamos contra seu predomínio; porque significa o atraso do desenvolvimento da moral socialista”.


 



Era preciso ganhar a consciência dos trabalhadores, era preciso fortalecer neles uma ética socialista que tivesse no trabalho não-alienado sua concretude. O Partido revolucionário e seus militantes teriam um grande papel neste processo de reeducação da sociedade nova. Escreve ele: “O grande papel do Partido na unidade de produção é ser seu motor interno e utilizar todas as formas de exemplo de seus militantes para que o trabalho produtivo, a capacitação, a participação nos assuntos econômicos da unidade sejam parte integrante da vida dos operários e se transformem num hábito insubstituível”.


 



Outro aspecto, vinculado ao anterior, que diferenciava o projeto societário de Guevara das experiências do “socialismo real”, era quanto à igualdade dos salários. No regime soviético as diferenças salariais entre trabalho intelectual e manual, trabalho especializado e não especializado, entre função dirigente e subordinada, passaram a ser defendidas como intrínsecas a todo período de transição do socialismo ao comunismo. Na tradição soviética todo “igualitarismo” passou a ser definido como um desvio pequeno-burguês.


 



Pelo contrário, Guevara acreditava que, já no início da transição, o novo Estado Socialista e o Partido Comunista deveriam tomar medidas no sentido de eliminar as mazelas provindas da sociedade capitalista, a saber: divisão estanque entre trabalho intelectual e manual, entre funções de mando e subordinadas, o predomínio de incentivos materiais através de maiores salários, acesso a bens de consumo, etc. – o que, no caso soviético, levou à formação de uma burocracia afastada das massas trabalhadoras. Ele defendeu que o socialismo, necessariamente, deveria tender para a igualdadeo dos salários e das condições de vida. Isto, inclusive, deveria implicar em sacrifícios para várias camadas de trabalhadores, especialmente dos setores médios e da burocracia.


 



Afirmou Guevara: “Esta tarefa de distribuição dos bens do país é a mais difícil e a mais penosa; estamos empenhados nela agora para repartir de modo eqüitativo nossa pobreza, para que ninguém deixe de comer, de se vestir, de receber educação, atendimento médico e também para que ninguém receba demais (…) não deve recair sobre os trabalhadores a desgraça de pertencer a uma indústria de pouca rentabilidade ou a sorte excessiva de estar numa indústria das mais rentáveis”.


 


Continuou: “os trabalhadores que hoje têm salários acima da norma terão seus salários congelados e o trabalhador que ingresse na produção passará a um trabalho similar, não com o salário daquele companheiro que tinha adquirido seu direito anteriormente, mas com o novo salário”.


 



O trabalho voluntário realizado pela juventude comunista e membros do governo era uma das muitas medidas visando valorizar o trabalho manual-produtivo e, em certo sentido, reduzir o fosso existente entre os dois tipos de trabalho – intelectual e manual.
Apesar de presença de certo voluntarismo, uma vontade de pular etapas – que se traduz no ritmo acelerado da estatização do conjunto dos meios de produção, na eliminação dos incentivos materiais, no nivelamento salarial e na tentativa de redução do espaço de ação da lei do valor, ele levantou questões essenciais que devem ser enfrentadas logo nos primeiros dias da transição socialista. Em outras palavras, seria preciso realizar, ao lado do desenvolvimento das forças produtivas, uma verdadeira revolucionarização das relações de produção – eliminando gradualmente as diferenças entre trabalho intelectual e manual, das funções de execução e de mando, reduzindo as desigualdades salariais e no nível de vida entre as diversas camadas de trabalhadores e entre elas e os membros do aparato estatal.


 



Talvez sejam estas teses guevaristas, muitas das quais foram e são aplicadas pelo Estado cubano, que nos permitem entender melhor a incrível capacidade de resistência do poder popular em Cuba durante todos estes anos, apesar do cerco imperialista e da débâcle soviética. É preciso aprender com esta experiência, sem tê-la como “modelo ideal” a ser aplicado extemporaneamente e sem ter em conta as particularidades nacionais.


 


Guevara e a construção do homem novo
 


Neste terceira, e última, parte do artigo O pensamento vivo de Che Guevara, trataremos de um dos seus temas centrais: a construção do homem novo. Este figurava, com um lugar de destaque, no projeto societário socialista. O “homem novo” deveria ser a principal obra da revolução se que só poderia ser completada na sociedade comunista futura. No entanto, acreditava, era preciso começar a construí-lo no processo mesmo da luta revolucionária. Os germes do “homem novo” deveriam já estar presentes no militante revolucionário comunista. Usando uma idéia cara à Gramsci, o comunista deveria ser uma prefiguração do “homem novo” do futuro.


 



Afirmou Che: “Neste período de construção do socialismo, podemos ver o homem novo que vai nascendo. Sua imagem não está ainda acabada; não poderia estar nunca (…) O importante é que os homens vão adquirindo cada dia mais consciência da necessidade de sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motores dela.”


 



O sistema capitalista, no seu processo de produção e de reprodução, não cria apenas mercadorias e mais-valia, cria também homens incompletos, fragmentados; ou seja, alienados. Sobre este processo afirmou Che: “O exemplar humano, alienado, tem um invisível cordão umbilical que o liga à sociedade (capitalista) em seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, vai modelando seu caminho e seu destino (…) As leis do capitalismo, invisíveis para o comum dos mortais, e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este perceba”.


 



As particularidades do processo de transição ao socialismo, que pressupõe a permanência do mercado e de suas leis – inclusive a lei do valor – levam a que a sociedade nova ainda conviva, por algum tempo, com elementos das ideologias predominantes no capitalismo – a ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Estas continuam a se reproduzir, ameaçando o futuro da transição, se não forem contidas pela ação firme e consciente do novo poder popular e socialista.


 



“As taras do passado, afirmou Che, se transferem ao presente na consciência individual, e é preciso fazer um trabalho contínuo para erradicá-las (…) A nova sociedade em formação tem que competir muito duramente com o passado (…) pelo próprio caráter deste período de transição com a persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, por conseguinte, na consciência”.
Por isso, Che se colocou contra os métodos de emulação que priorizassem as concessões de estímulos materiais – aumento de quotas de consumo, prêmios de produtividade, etc. Segundo ele, a necessidade do aumento rápido da produção levou à “tentação de seguir caminhos trilhados do interesse material”, correndo-se o risco de perseguir o sonho irrealizável de buscar construir o socialismo com a ajuda “das armas defeituosas que nos foram legadas pelo capitalismo”; estas fariam um lento trabalho de sabotagem sobre o desenvolvimento de uma consciência verdadeiramente socialista dos trabalhadores de vanguarda. “Daí, afirmou Che, ser importante escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral (…). A sociedade em seu conjunto deve se converter em uma gigantesca escola”.


 



A persistência da ideologia burguesa, engendrada pelas leis de mercado, levam o trabalhador a considerar natural a vinculação direta entre sua produtividade média e seu acesso ao consumo de mais e melhores mercadorias. “Justamente por isso, afirmou Guevara, a ação do Partido de Vanguarda consiste em levantar ao máximo a bandeira oposta, a do interesse moral, do estímulo moral, a bandeira dos homens que lutam, se sacrificam e não esperam nada mais do que o reconhecimento por parte de seu companheiros.”. Continuou ele “O estímulo moral, a criação de uma nova consciência socialista é o ponto em que devemos nos apoiar, onde devemos chegar e ao qual devemos dar ênfase (…). O estímulo material é o resquício do passado com o qual se deve contar, mas cuja importância deve diminuir na consciência das pessoas na medida em que o processo avança (…). O estímulo material não fará parte da nova sociedade que está se criando, deverá se extinguir no caminho”.


 



Para Guevara o homem no socialismo, “apesar da sua aparente homogeneização, é mais completo (…) e sua possibilidade de se expressar e se fazer sentir no aparato social é infinitamente maior.” O socialismo seria o momento de recuperação da integralidade humana, da construção do homem multidimensional, do homem desalienado. O socialismo plenamente realizado representaria a apropriação, pelos homens, das condições de sua produção e reprodução de sua vida.


 



Este processo teria início com a implantação do planejamento consciente, e democrático, da produção econômica e da própria sociedade. Assim, o homem tomaria o seu destino nas mãos. Afirmou ele: “é preciso acentuar sua participação consciente, individual e coletiva, em todos os mecanismos de direção e de produção (…). Assim obterá a consciência total de seu ser social, o que equivale à sua realização plena como criatura humana, rompidas as cadeias da alienação”. E concluiu: “o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria”.


 



Seguindo uma indicação do jovem Marx, Guevara constata que o trabalhador “morre diariamente nas oito horas em que atua como mercadoria para ressuscitar em sua criação espiritual”. Mas, no capitalismo, mesmo o lazer e a produção cultural não passam de tentativas de fuga. “A lei do valor não é mero reflexo das relações de produção” ela perpassa todas as relações humanas, inclusive fora do trabalho. Na sociedade atual “a angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvula cômodas para a inquietação humana”. Sendo, portanto, úteis para a reprodução do sistema.


 



O trabalho desalienado é uma categoria importante para Guevara, seria exclusivamente através dele que poderia ser constituído o homem novo. Por isso, a renovação e valorização do trabalho, especialmente o manual-produtivo, deveria ser uma tarefa central do novo poder popular e socialista. Este processo passaria pela redução das desigualdades entre trabalho intelectual e manual, entre funções de comando e funções subordinadas. O trabalho manual-produtivo não poderia ser a sina dos definidos como menos aptos, como o é nas sociedades capitalistas. No capitalismo o trabalho desqualificado é sinônimo de baixos salários e de precarização das condições de vida, quando comparadas com formas “superiores” de trabalho – o trabalho intelectual e de dirigente do processo produtivo e estatal. Por isto, para Guevara, o socialismo deveria fundar também uma nova ética do trabalho.


 



Em busca deste objetivo, Guevara criou os batalhões de trabalho voluntário, nos quais estudantes, trabalhadores intelectuais e funcionários públicos de todos escalões se integravam na produção, através do trabalho manual. O modelo de educação da nova geração cubana deveria se dar na integração harmônica do estudo com o trabalho.


 


Referindo-se aos jovens cubanos ele afirmou: “Sua educação é cada vez mais completa, não nos esquecemos de sua integração no trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico em suas férias ou simultaneamente ao estudo. O trabalho é um prêmio em certos casos, um instrumento de educação, em outros; nunca um castigo.” Portanto, o trabalho manual deveria se livrar do estigma de martírio e castigo, que de certa forma carregou inclusive nas experiências socialistas – que tinha, inclusive, no deslocamento para os trabalhos manuais uma forma de castigo para os opositores ao regime. O exemplo mais condenável desta concepção foi a expansão do trabalho forçado na URSS nas décadas de 1930 e 1940.


 



A sociedade socialista em construção deveria se livrar também da velha concepção capitalista de que a capacidade de consumo de mercadorias seria a medida de todos os homens. Se o socialismo quiser competir neste terreno estará de antemão derrotado. Não seria possível oferecer um nível de consumo superior ao existente nas sociedades capitalistas avançadas para toda a população, nem a curto e nem à longo prazo. Afirmou Guevara: “Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas maravilhas que vêm do exterior possam ser compradas com os salários atuais. Trata-se, precisamente, de que o indivíduo se sinta mais pleno, com mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade”.


 



Outra característica do humanismo socialista, defendido por Che, é o internacionalismo. Ser comunista se confundia com ser internacionalista e ter amor pela humanidade. “Permita-me dizer-lhes, afirmou ele, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade (…). Nosso revolucionário de vanguarda tem que idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas e fazê-lo único, indivisível”.


 



O militante da causa socialista não deve se contentar apenas em realizar as tarefas locais e se bastar com elas. Mesmo as pequenas vitórias cotidianas podem adormecer o espírito transformador e levar ao acomodamento e isto pode levar a morte da revolução e da possibilidade da realização plena do socialismo. “Se o afã de revolucionário se debilita quando as tarefas mais prementes se realizam a nível local e se esquece do internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e desaparece numa cômoda modorra, aproveitada por nossos inimigos irreconciliáveis” e concluiu Che: “Não pode existir socialismo se nas consciências não se opera uma mudança que provoque uma nova atitude fraternal diante da humanidade”.


 



No belíssimo texto “O que deve ser um jovem comunista”, Guevara reafirmou suas teses humanistas e internacionalistas: “o que se coloca para todo jovem comunista é ser essencialmente humano, ser tão humano que se aproxime do melhor dos humanos. Purificar o melhor do homem através do trabalho, do estudo, da prática da solidariedade contínua com o povo e como todos os povos do mundo; desenvolver o máximo de sensibilidade, até o ponto de sentir-se angustiado quando em algum canto do mundo um homem é assassinado e até o ponto de sentir-se entusiasmado quando em algum canto do mundo se levanta uma nova bandeira de liberdade”.


 



Contraditoriamente, a vitória da revolução pode levar a burocratização dos quadros dirigentes do Estado e do Partido, por isso é necessário um constante processo de vigilância e educação ideológico. A burocratização é um instrumento a serviço da contra-revolução. “Contra-revolucionário é todo aquele que contraria a moral revolucionária (…) é (também) aquele senhor que, valendo-se de sua influência, consegue uma casa, consegue depois dois carros, viola o racionamento e obtém depois tudo o que o povo não tem (…). Aquele que utiliza suas influências boas ou ruins em proveito pessoal ou dos seus amigos, este é contra-revolucionário”. O dirigente do Partido e do Estado deve ter uma conduta exemplar, este é um fator determinante para se conquistar as massas para a construção do socialismo.


 



A tarefa de construção do homem novo é colossal. A sua realização exige vontade férrea, e grandes sacrifícios, dos dirigentes revolucionários. Não se realizará de uma só vez, conhecerá avanços e recuos. Os métodos serão importantes – por isso é preciso encontrar métodos novos, adequados à nova sociedade socialista que se quer construir. Mas, ela é possível de ser realizada e nela se assentará a possibilidade de realização do sonho socialista – de homens e mulheres libertos da exploração, da opressão de toda espécie – uma humanidade emancipada.


 



Afirmou Guevara: “Se alguém nos disser que somos quase uns românticos, que somos idealistas inveterados, que estamos pensando em coisas impossíveis e que não se pode conseguir da massa do povo que ela seja quase um arquétipo humano, temos que responder uma e mil vezes que sim, que isso é possível, que estamos no caminho certo, que todo o povo pode avançar, acabar com a mesquinhez humana como está acontecendo em Cuba nestes quatro anos de revolução.”


 



Antes de partir para a sua última aventura na Bolívia ele escreveu a seus pais: “Outra vez sob meus calcanhares o lombo de Rocinante, retomo o caminho com meu escudo no braço (…) Muitos dirão que sou aventureiro, eu sou de fato, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a pele para demonstrar suas verdades”.


 



No dia 9 de outubro de 1967, o comandante Ernesto Che Guevara morreu lutando pela realização deste ideal. Do seu exemplo militante nascerá a nova geração de homens e mulheres novos. Até a vitória, sempre!


 


 


* Este ensaio foi publicado originalmente nesta mesma coluna em três partes em 2002. 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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