A Ordem dos Músicos do Brasil: vampirismo e corrupção

“Minhas crianças, por que é que não aprendem canções? Elas são capazes de vos dar encorajamento e estímulo; elas podem vos ensinar a observar e a preservar as coisas; elas podem vos ensinar a associar, a compreender com profundidade; elas são capazes de apagar a vossa raiva; elas vos ensinam a ouvir o vosso pai, que conhece todas as regras que regem a vossa longa caminhada; elas vos ensinam os nomes dos pássaros, dos animais, das árvores.” – Confúcio (551-479 a.C.)

“Meu instrumento é a voz aliada à palavra (…) não aceito discriminação" ¹, respondeu Elis Regina em 1978, ao ser indevidamente questionada pelo burocrata Wilson Sandoli, interventor nomeado presidente da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) em 1966 e sistematicamente "reeleito" até 2008, quando foi finalmente afastado por conta de abusos, incompetência e escândalos de corrupção acumulados no curso de um longo e lamentável enredo.

Músicos e compositores de toda espécie têm apontado irregularidades e abusos cometidos pela OMB, acusada na Justiça de praticar irregularidades desde 1964. O leque de acusações vigentes envolvendo Wilson Sandoli é extenso e ilustra a situação: desvio de verbas (cerca de 1.4 milhão de reais), compra de carros blindados, compra de armas, empréstimos e despesas pessoais. Tudo pago com recursos dos contribuintes músicos.

Ao mesmo tempo, existe amplo reconhecimento que o dano causado pela OMB ao patrimônio dos músicos não é só econômico, mas também simbólico porque afeta a imagem profissional dos músicos negativamente. Além de Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lobão, Fernanda Abreu, Jards Macalé e inúmeros outros músicos profissionais têm expressado profunda insatisfação com a OMB ao longo das décadas. Atualmente, existem mais de 5.000 liminares de músicos profissionais contra a obrigatoriedade de vinculação à OMB.

O quadro é deplorável e de fato justifica a frustração da classe.

A lei 3.857/60 criou a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) em 1960. Entre outras medidas, a Ordem estabeleceu requisitos para o exercício da profissão de músico e instituiu o poder de policia sobre esta atividade artística. Contudo, tanto as restrições profissionais como o poder de policia são inconciliáveis com a liberdade de expressão da atividade artística.

Não existe justificativa que ampare essas medidas. A mera noção de haver um órgão público para controlar a atuação de artistas, com o poder de lhe impor penalidades, é plenamente incompatível com a tutela da liberdade de expressão. Não cabe ao Estado policiar a Arte em uma democracia constitucional, nem existe justificativa legítima que ampare a imposição de quaisquer requisitos para o desempenho da profissão de músico.

É hora de reconhecer que os dispositivos legais sustentando tais normas são maléficos e estão em descompasso com a Constituição de 1988, devendo, por tal razão, ser definitivamente expurgados da ordem jurídica.

De fato, foram esses dispositivos policialescos que produziram a histórica incapacidade de ação afirmativa por parte da OMB, que acabou se tornando em um centro de desvios e corrupção, em uma agência de controle e extorsão. A OMB é uma caixa preta que detêm 10% dos contratos de shows internacionais que vêm ao Brasil e não presta qualquer conta disso. Hoje em dia, fiscais da OMB chegam aos shows de forma terrorista, ameaçando, desligando e apreendendo o equipamento, prendendo o músico.

A conseqüência natural disso é que a inadimplência da OMB agora chega a 80%, evidenciando a forte crise de representatividade da Ordem, encurralada por inadimplência maciça e uma enxurrada de liminares. Tudo isso é resultado direto de uma série de coisas erradas que perduram há muito tempo, inclusive eleições rotineiramente antecipadas e convocadas de modo suspeito.

Afinal, não parece existir sequer uma razão para não extinguir a OMB.

Sendo assim, ninguém ficou surpreso quando, em 14 de julho de 2009, a procuradoria-geral da república protocolou, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF 183(veja aqui) – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – contra artigos da Lei nº. 3.857/60, sustentando que a OMB representa uma violação de preceitos fundamentais e da liberdade profissional do músico brasileiro. Já era hora.

Uma breve visita ao site da OMB-SP(veja aqui) demonstra uma oferta morta, um vampiro cuja razão-de-ser é coletar dinheiro sem justificativa teórica ou prática, que se blinda atrás do atraso legislativo do país. Outros sites regionais da OMB tentam um marketing tímido que, de forma irônica, revela o constrangimento diante do próprio vampirismo. Todavia, atualmente não existe sequer um serviço efetivamente útil que a OMB possa oferecer ao músico brasileiro.

Isso talvez não fosse verdade em 1960, mas hoje certamente é. Além de não ter condições técnicas, método ou conteúdo apto a promover o músico, a Ordem se tornou um ativo tóxico na vida do músico profissional brasileiro.

Um novo modelo, de natureza afirmativa e opcional, deve substituir o velho. A tese é que uma organização deve se mostrar suficientemente útil para ser deliberadamente adotada, estabelecendo que todo e qualquer aspecto punitivo ou policial deve ser erradicado do vocabulário musical do país. Precisamos de uma oferta capaz de atender às necessidades do músico profissional do século 21: uma entidade que represente uma utilidade.

Ao novo modelo compete agregar valor para todos os músicos profissionais, prestando especial atenção aos setores em franco crescimento como a musicoterapia, programas sociais e pedagógicos, P & D envolvendo profissionais da música, além de produtores musicais de todos os tipos, folcloristas, compositores, músicos de orquestra, DJs, violeiros, etc.

A cena musical do país mudou bastante em termos de produção, distribuição e aplicação no curso das últimas duas gerações, a partir do evento da revolução digital que causou mudanças estruturais estabelecendo novas regras nas áreas da cultura, da comunicação e da política. A nova cena pede por uma nova estratégia de representação dos músicos profissionais.

Cabe, então, organizar uma consulta colaborativa com a classe dos músicos, visando identificar as potencialidades de uma nova organização capaz de sintonizar as demandas profissionais do músico brasileiro com os tempos, criando um contexto amplo para a utilização dos instrumentos contemporâneos de expressão, organização, marketing, pesquisa, comunicação, produção e educação musical.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho