Quem gosta de ingnorãça é intelequituau burgueis

A compra e distribuição, pelo Ministério da Educação, do livro “Por uma vida melhor”, de autoria de Heloísa Ramos, deu motivo para analistas e comentaristas conservadores e reacionários hostilizarem o governo. A indignação causada pela adoção no ensino público de uma obra que buscar validar erros gramaticais crassos foi utilizada para atacar o MEC e até o ex-presidente Lula, por sua falta de escolaridade.

Houve quem, preocupado em defender o governo da sanha direitista, golpeou a mídia pelas suas também constantes agressões à língua pátria e acabou dando aval à cartilha. “Por uma vida melhor” ensina, com todas as letras: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’.’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.” Ora, não cabe a um livro destinado ao ensino do uso correto da língua dizer que o aluno pode falar errado. Pode não! Ele será entendido, se assim falar, mas estará falando errado – e está na aula de Português para aprender a ler, escrever e falar corretamente. Se alguém o corrigir, não estará sendo preconceituoso, mas auxiliando-o a sair do erro.

Em seguida, ao exemplificar as falas “Nós pega o peixe” e “Os menino pega o peixe”, a cartilha, além de não dar a forma correta, confunde o estudante: “Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala”. Ou seja, tudo pode, desde que o falante domine as duas variedades (norma culta e a “norma popular”). Indubitavelmente, a autora revela preconceito linguístico, ao achar que a população deve falar errado, sob o risco de confundir-se com as “classes sociais que têm mais escolarização” e, “por uma questão de prestígio”, falam corretamente – sim, isso está escrito no “Por uma vida melhor”.

A crer-se que a autora faz o que escreve, quando vai à feira rebaixa seu linguajar para pedir “O Japa, me dá umas garapa e dois pastéu de boi ralado”, mas, num vernissage de obras conceituais, empina o nariz, estica o minguinho e solicita “Garçom, por favor, sirva-me um caldo de cana acompanhado de um pastel de carne”… E aí, de quem é o preconceito?

Até a Maria Helena Rubinato de Sousa, filha do autor do Samba do Arnesto, Adoniran Barbosa, reproduziu no seu blog uma crítica, de Carlos Eduardo Novaes, infelizmente com certo viés direitista, registrando que “no meu modexto entender a linguajem horal é para sair pela boca e não para ser botada no papel. A palavra impreça deve obedecer o que manda a Gramática”.

Com mais sobriedade, a Academia Brasileira de Letras registrou o empenho do MEC em melhorar o nível do ensino escolar no país, mas pontificou: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de Língua Portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos, variedade que eles deverão conhecer e praticar no exercício da efetiva ascensão social que a escola lhes proporciona. A posição teórica dos autores do livro didático que vem merecendo a justa crítica de professores e de todos os interessados no cultivo da língua padrão segue caminho diferente do que se aprende nos bons cursos de Teoria da Linguagem”.

Na sociedade – e no governo – existem correntes de pensamento que, para mostrar sua simpatia ou engajamento com os setores mais explorados ou sofridos da população, buscam a identidade com eles e aproximam-se do seu modo de comportamento e fala. Pior, há os que acham que esses setores devem ser mantidos na sua “pureza” – os índios, no neolítico; os ignorantes, no seu falar “exótico”, popular…

Já Marx enfrentou esse problema quando, numa reunião do Comitê de Correspondência Comunista, em 1846, debatendo com Wilhelm Weitling, um alfaiate que queria atuar no movimento operário usando um linguajar messiânico cristão, bateu na mesa e gritou: “A ignorância nunca ajudou ninguém até hoje!” É conhecido o enfrentamento de Lênin com os “amigos do povo” que, não raro, obstaculizavam a luta pelo socialismo.

Estamos no século XXI. Índio não precisa de apito, mas de condição digna de vida e internet com banda larga; trabalhadores não se satisfazem com o macacão roto e a cachaça de má qualidade, mas anseiam por inclusão social e cultural. Para isso, carecem de ensino público de qualidade, e não populista. "O povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual", ensinou Joãosinho Trinta, em português escorreito, para quem quiser ler, ouvir e bem entender.

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