A causa de Milosevich também é nossa (6)

O exemplo de Dimitrov
 


 


Um exemplo inspira outro. A firmeza de caráter de Milosevich, encarando com dignidade e coragem os rábulas fantasiados de promotores e juizes a serviço, se não a soldo, da OTAN e d

Vale a pena relatar as circunstâncias desse processo, não só para traçar um paralelo com o que terminou com a morte de Milosevich, mas também para relembrar que os comunistas foram os mais decididos e corajosos adversários do nazi-fascismo. Mesmo porque a máquina de propaganda imperialista, alimentada pelos “cientistas políticos” do dólar, do Pentágono e da CIA (entre os quais se incluem eminentes pensadores de todos os matizes do liberalismo, de Hayek a H. Arendt), empenha-se em assimilar o comunismo ao nazi-fascismo, apresentando-os como espécies do gênero “totalitarismo”. Esse termo, forjado por Mussolini e assumido, em sentido positivo, por seus partidários, nomeadamente pelo filósofo reacionário Gentile, para caracterizar a peculiar “visão fascista do mundo”, foi transposto com sentido pejorativo ao arsenal de propaganda da “guerra fria”1 com o explícito objetivo de desqualificar a União Soviética, pouco lhes importando estropiar descaradamente os mais gritantes fatos históricos, a começar o de que o fascismo e mais tarde o nazismo constituíram respostas contra-revolucionárias ao avanço do movimento operário, principalmente comunista. A indústria sionista do holocausto contribui para essa impostura ao restringir a denúncia dos crimes nazistas à perseguição dos judeus, a qual só começou a atingir escala de genocídio a partir de 1940, quando comunistas e social-democratas, primeiros inquilinos dos campos de concentração, tinham sido liquidados. Isso não diminui em nada o horror do martírio imposto aos judeus. Mas os vinte e sete milhões de soviéticos que morreram na luta contra as hordas hitlerianas devem cair no esquecimento?


 


 


Dimitrov já tinha atrás de si uma larga e dura trajetória militante quando foi preso em Berlim, em 9 de março de 19332. Em 1902, com vinte anos, aderiu ao Partido operário social-democrata búlgaro (POSDB). Em 1903, acompanhou o fundador do Partido, Dimitri Blagoev, o mais importante dirigente marxista de sua época nos Bálcãs, na formação da ala revolucionária (socialista de esquerda) do POSDB. Em 1909, foi eleito membro do comitê central do Partido e em 1913, deputado na Assembléia Nacional da Bulgária. A vaga internacional de entusiasmo suscitada pelo triunfo da Revolução Russa de outubro 1917 repercutiu com especial profundidade entre os búlgaros, até por razões histórico-culturais. (Diferentemente dos poloneses, anti-russos há muitos séculos, os eslavos do sul receberam apoio decisivo do Czar e da opinião russa, inclusive com envio de voluntários, em suas lutas de libertação contra o império otomano). O XXII Congresso do POSDB, ala socialista de esquerda (Sofia, 25 a 27 de maio de 1919) decidiu aderir sem reservas à Internacional comunista, modificando conseqüentemente o próprio nome para Partido comunista. Nas eleições legislativas búlgaras de 22 de abril de 1922, a aliança do Partido camponês (União Agrária) e do comunista obteve 74% dos sufrágios.


 


 


Entretanto, faltava consistência ao governo formado pelo partido camponês (União Agrária), com apoio dos comunistas e confiança entre as duas forças que o compunham. Stramboliiski, da União Agrária, que chefiava o governo desde o final de 1919, temendo ser ultrapassado por seus aliados, hesitava em tomar medidas enérgicas para deter as manobras contra-revolucionárias da burguesia.


 


 


Naquele momento, a vaga revolucionária do proletariado europeu já estava entrando em refluxo. Na Alemanha e na Hungria, levantes revolucionários tinham sido esmagados. Na Itália do Norte, durante o “biênio vermelho” (1919-1920), os operários haviam tomado as fábricas, os camponeses e proletários agrícolas ocupado fazendas, mostrando que não necessitavam dos capitalistas para dirigir a produção. Suprema insolência que os magnatas da indústria, os latifundiários, os banqueiros e outros milionários ansiavam por castigar.  Compreende-se que tenham não somente subvencionado a contra-revolução, mas também apoiado ou pelo menos aprovado, em 1922, a Marcha sobre Roma, que valeu a Mussolini, à frente daquele grotesco desfile enquadrado por seus arditi e outros espancadores e terroristas profissionais, o convite do rei Vittorio Emanuele III para formar um novo gabinete. O sinistro palhaço, macaqueando poses de imperador romano e envergando o título de Duce, não tardou a instaurar sua ditadura terrorista.


 


 


Estimulada pelo sucesso de tantas contra-revoluções, a reação búlgara não conteve sua sanha. Na noite de 9 de junho  de 1923,  enquadrado por veteranos de guerra, notadamente os 10.000 russos do barão Piotr Nikolayevich Wrangel3, um movimento sedicioso desfechou um golpe de Estado, derrubando o governo Stramboliiski e massacrando ministros e deputados agrários. O Partido Comunista cometeu o erro gravíssimo de permanecer de braços cruzados. Tsankov, chefe do governo golpista, não cometeu o erro oposto.  Após desmantelar a União Agrária, voltou-se contra o movimento sindical. No dia 12 de setembro, desencadeou furiosa operação policial, prendendo mais de 2.000 militantes, fechando clubes operários, gráficas, confiscando fundos e arquivos do Partido comunista etc. O Partido respondeu imediatamente por uma insurreição, dirigida por Dimitrov e por Vassil Kolarov. Batismo de fogo dos comunistas búlgaros, ela foi lançada com forte ímpeto e suscitou inumeráveis atos de heroísmo popular. Mas a superioridade de recursos bélicos da reação acabou se impondo. Dimitrov logrou organizar a fuga dos destacamentos vermelhos que não tinham sido aniquilados, livrando-os das garras de Tsankov e preservando-os para os combates futuros, que não tardariam muito.    


 


 


Condenado duas vezes à morte (desperdício jurídico, já que morremos uma vez só), pelos rábulas da ditadura militar cripto-fascista, Dimitrov passou a atuar em tempo integral, a partir de 1923, no Comitê executivo da Internacional comunista, do qual se tornou um dos mais proeminentes dirigentes.


 


 


Nessa condição, dez anos depois, ele estava clandestino na Alemanha, onde o marechal Hindenburg, último presidente da moribunda República de Weimar, vinha de nomear chanceler o conhecido extremista de direita Adolf Hitler, abrindo aos nazistas as portas do poder. A novidade da situação política explica porque a clandestinidade de Dimitrov não era tão rigorosa: estava habituado à polícia de Weimar, não à dos celerados da cruz gamada. Preso em 9 de março de 1933 em Berlim, foi imediatamente acusado de “tentar mudar a estrutura de Estado da Alemanha pela violência” (em evidente contraste com os métodos pacíficos, humanitários e legalistas dos nazistas) e, sobretudo “de ter incendiado o Reichstag”. Entrementes, a polícia já havia agarrado, nas cercanias do local, logo depois do atentado, o holandês Van der Lubbe, ex-militante do Partido comunista de seu país. Torturado pela Gestapo, confessou ser autor do incêndio, negando, entretanto, que se tratava de um plano comunista. Não obstante, Hermann Goering, presidente do Conselho da Prússia, mandou prender os principais dirigentes do Partido comunista alemão (KPD). Dimitrov, naquele momento, viajava num trem que ia de Munique a Berlim, sem ter a mais pálida idéia do que ocorria no Reichstag. O que explica a facilidade com que caiu nas garras da Gestapo.


 


 


(continua)


 


 


Notas


 


1 D Losurdo reconstituiu com irrefutável precisão analítica a lenta transmutação que Hanna Arendt imprimiu à noção de totalitarismo para adaptá-la ao arsenal ideológico da guerra fria. Ver Crítica Marxista, nº 17, 2003.


 


2 Apoiei-me, nas informações históricas que seguem,  em Oeuvres Choisies em três volumes de Dimitrov (Sofia-Presse, 1972) e em Précis d’histoire du Parti communiste bulgare , obra coletiva (Sofia-Presse, 1978).


 


3 Wrangel sucedera a Denikin no comando do Exército Branco e em 1921 combatera os Soviets a partir de suas bases na Criméia, até ser expulso de lá pelo glorioso Exército Vermelho. Recebido em Constantinopla, então ocupada por seus protetores britânicos, transferira-se para a Bulgária, sempre prestando serviços à contra-revolução.

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