Um tijolaço contra Lenin

O professor Robert John Service foi um dos primeiros historiadores britânicos a ter acesso aos arquivos soviéticos após o fim da URSS. Membro da Academia Britânica, publicou em 2000 “Lenin a Biography”, lançada este ano no Brasil, pela Difel com um tít

“Quando irrompi no quarto de Lenin, cheio de médicos e de pilhas de remédios, Ilich deu o último suspiro. Seu rosto descaiu e empalideceu terrivelmente. Ele soltou um chiado e suas mãos tombaram. Ilich, Ilich já não existia mais.” Este relato foi feito por Nikolai Bukharin sobre o acontecimento de 21 de janeiro de 1924. Pouco depois, Vladimir Mayakovski poetou: “Lenin viveu, Lenin vive, Lenin viverá!”.


 


De monstrinho a monstrão


 


Robert Service bem que tentou não deixar pedra sobre pedra sobre o seu biografado: abordou as relações pessoais de Lenin, sua obra teórica e sua atividade política, que resultou na construção da mais importante experiência socialista do século passado. E para começar pelo princípio, registrou que o pequeno Vladimir, ainda antes de aprender a andar, “ficava batendo com a cabeça no carpete – ou até nas próprias tábuas do assoalho”. Quando bebê, “tinha pernas curtas, fracas e uma cabeça grande. Estava sempre caindo no chão, aparentemente porque era pesado na parte superior do corpo. Uma vez tendo caído, acreditavam, ele ficava malhando o chão a fim de tomar impulso para erguer-se e batia com a cabeça de pura frustração”.



Bem, mesmo depois de tanta cabeçada, o monstrinho cresceu e, aos nove anos de idade ingressou no ginásio onde, com “sua túnica azul-escura com o colarinho militar de pontas viradas para cima, e nove botões de latão dourado, parecia igualzinho aos outros” (“Em termos de detalhes pessoais, Service é imbatível”, festejou o crítico Craig Brown, do Mail On Sunday).



Aos 16 anos,  Volodya – como era chamado pelos familiares – teve o irmão mais velho, Alexander, executado pelo czarismo (ele participou de um atentado frustrado contra a vida de Alexander III) e isso, claro, teve forte reflexo na vida do rapaz. Volodya começou suas atividades políticas e, conseqüentemente, passou a ser perseguido pela polícia czarista. Conheceu Nadjda Konstantinovna Krupskaya, com quem se casou – e sua relação marital também é esmiuçada por Service: “Seu casamento com Nadya nunca implicou sentimentos românticos profundos da parte dele, ou mesmo dela, e deve ter havido ocasiões em que outras mulheres bolcheviques devem tê-lo atraído fortemente”. Fala do ''caso'' extraconjugal que diz que Lenin teve com Inessa Armand e, com a argúcia de escriba de revistas de fofocas, sentencia: “Embora as memórias de Nadejda Konstantinovna não se refiram a qualquer tensão entre marido e mulher, os sinais externos sugerem uma história diferente”.



Literatura medíocre


 


Mas deixemos a Caras o que é de Caras. O historiador da academia da rainha Elizabeth II também se debruça sobre a literatura produzida pelo revolucionário russo. Pouco escapa à sua ferina análise. “Que Fazer?” é um “livreto” em que ”mal se pode dizer que exista um conselho prático no texto, do princípio ao fim”. Visão diferente teve a marxista brasileira Loreta Valadares, para quem “‘Que Fazer?’ é a síntese de uma intensa e apaixonada luta contra aqueles que defendiam a submissão ao espontaneísmo das massas e queriam confinar o movimento operário nos limites da luta econômica. Tem como alvo certeiro os que subestimavam a teoria e menosprezavam o papel do partido na elevação da consciência política das massas”.



“Um passo à frente, dois passos atrás”, publicado em 1904, quando Lenin polemizou sobre os rumos que o partido do proletariado devia tomar, é uma ''história unilateral e parcial da disputa interna do partido''. “Duas táticas da social democracia na revolução democrática”, escrita no início de 1905, na opinião do professor Augusto Buonicore, dirigente do PCdoB, um “verdadeiro tratado da ciência política revolucionária do século 20”, foi para o britânico ''outro panfleto''.



 


Em “Materialismo e empiriocriticismo”, a obra em que Lenin reafirma os postulados materialista-dialéticos do marxismo, os ''protestos de natureza ideológica não passavam de uma máscara'', na opinião do biógrafo. Aliás, “Lenin não conseguiu chegar nem perto de um ponto de vista filosófico coerente. … não teria passado num exame do primeiro grau de filosofia”.


“O Estado e a revolução”, outro clássico da literatura marxista, ''não contém meramente a falta de proposição de liberdade civil universal, mas é de fato uma campanha clara e deliberada contra essa liberdade''.


 


Saudades do czarismo


 


Quanto à obra prática de Lenin… O partido bolchevique era “um grupo impiedoso”. E o Estado decorrente da revolução por ele liderada era pior do que o czarismo: “O Ministério do Interior, sob os czares, não era nem de perto tão sistematicamente opressor quanto seria a força policial criada por Lenin no final de 1917”. “A repressora administração czarista era capaz de indulgências de uma forma que foi ausente por completo no período soviético sob Lenin”…


 


Toda essa análise de classe é permeada por uma fileira de adjetivos a respeito de Lenin: “manipulador de mulheres”, “bomba-relógio humana”, “tinha mais paixão pela ruína do que amor pelo proletariado”, tinha “preconceitos empedernidos” e uma “abordagem tacanha da política”. ''Sua falta de piedade era excepcional'' e ele ignorava “os sentimentos imediatos da humanidade”. A criança que era um monstrinho a bater cabeça no chão se transformou num adulto “manipulador consumado” que ''transformou seus métodos oblíquos e desonestos numa arte política. Nunca perdeu o interesse em aperfeiçoá-la''. Se Lenin, por um lado, “pessoalmente não tinha qualquer ambição por matar, mutilar ou nem sequer testemunhar qualquer barbaridade, por outro, sentia um prazer cruel em recomendar tal violência”.


 


Em resumo, Lenin “enganou a esposa, explorou a mãe e as irmãs, era choroso quanto à própria saúde, não tinha uma ótima opinião dos russos e nem mesmo da maioria dos bolcheviques. Apreciava o terror e não tinha uma idéia plausível sobre como garantir que a União Soviética pudesse vir a abrir mão dele”.



 


Ufa! A burguesia e seus escrevinhadeiros não perdoam o inimigo de classe mesmo que há decênios seu corpo esteja mumificado. A URSS já não existe. O século XX acabou e, em pleno século XXI, o fantasma comunista de Vladimir Ilich Ulyanov continua rondando o mundo, deixando os exploradores com insônia. No final de seu ambicioso panfleto, Service se pergunta: “Mas Lenin está realmente acabado?” Como que confessando o fracasso também de seu ataque à memória do falecido, ele mesmo responde: “O respeito por Lenin persiste amplamente. … Lenin não está completamente morto, pelo menos ainda não”.



 


Após fazer o balanço da vida e da obra do grande revolucionário russo, Robert Service encerra seu cartapácio difamatório suspirando: “Não são muitos os personagens históricos que alcançaram este resultado. Demos graças”.

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