A Guerra dos Perdidos, o advogado-do-mato e a caravana de 1980.

O primeiro sopro da luta pela memória e verdade no Araguaia, de profunda dimensão democrática, ocorre por volta de 1978 quando o advogado comunista Paulo Fonteles, assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Prelazia de Conceição do Araguaia (PA) vai atuar e viver na região do Araguaia.

Ex-preso político, com passagens pela Barão de Mesquita (RJ) – principal centro da tortura científica do país – e no Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército, em Brasília (DF), é que soube, ao lado da esposa Hecilda Veiga, da existência da guerrilha do Sul do Pará. Ali ingressou, naquelas duras condições, na organização dirigida por João Amazonas, Pedro Pomar e Mauricío Grabois, no Partido da guerrilha.

Na medida em que o clero se posicionava na luta de classes na Amazônia, forjando a resistência camponesa, fruto da revolta popular diante da grilagem de vastíssimas extensões de terras por poderosos grupos econômicos internacionais e nacionais — tais como a Volkswagen, Supergasbrás e Nixdorf – naquela cruenta fronteira de ocupação humana na Amazônia, impulsionada pela pecuária e cobiça mineral, Paulo Fonteles, também conhecido como advogado-do-mato recolhia, em sua área de atuação, o Baixo Araguaia, as primeiras informações sobre a epopéia de figuras heróicas, como a ‘Dina’ e o ‘Osvaldão’.

Ali já se desenvolvia a Guerra dos Perdidos, iniciada em 1976, na região dos Caianos, área onde os comunistas angariaram amplo apoio popular. O fato é que um grupo de posseiros se levantou, em trincheiras, contra os intentos da ‘Brasil-Central’, cujos interesses eram defendidos pelo amálgama dos agentes repressivos do estado e a pistolagem.

Tal encontro, dos agentes do Centro de Inteligência do Exército com o lumpesinato, filhos da miséria e do obscurantismo, projetou no curso do tempo uma a cultura do medo e da violência que faz com que o Pará, até hoje, seja recordista nacional do trabalho escravo e dos crimes políticos mediante paga.

Na medida em que ganhava a confiança dos posseiros nos Perdidos – pela prática justa, de enfrentamento contra as arbitrariedades do latifúndio, das forças de segurança do estado e da corrupção do aparato judicial – e os defendia, inclusive retirando-os das prisões em Belém (PA) e denunciando abusos sexuais cometidos contra crianças e mulheres camponesas é que tais lavradores começaram a se abrir para o advogado comunista.

Até então Fonteles defendia que o esforço do PC do B, apesar do heroísmo, teria sido um foco, que na linguajem militar quer dizer travar a luta sem respaldo ou apoio popular.

Foi nos Caianos, não tenho dúvidas, que as primeiras informações sobre a guerrilha foram prestadas. A visão do advogado-do-mato vai mudar radicalmente e ele passa a defender aquilo que a vida já comprovou no sentido de que aqueles guerrilheiros, vindos de todo o país, inspirados pela revolução chinesa e nas proezas do General Giap do Vietnã, teriam angariado grande simpatia e apoio das massas locais.

Percorrendo as matas rumorosas, conhecendo os sertões e suas gentes, formando, assim, ao lado de figuras como o do camponês Raimundo Ferreira Lima, o ‘Gringo’, dos advogados Gabriel Pimenta e Egydio Salles Filho, dos padres franceses Aristide Camió, Francisco Gouriou e Ricardo Rezende, uma geração de lutadores do povo que, enfim, perdeu o medo das centauras mãos do dinheiro e da malsã influência do ‘Kurtz’ da Amazônia – a figura dantesca do coronel que parece ser o retrato da falência da humanidade interpretada por Marlon Brando, em ‘Apocalypse Now’, de Coppola – o Major Sebastião Curió.

Com base no relato de camponeses e ex-mateiros, recolhidas por Fonteles, — somados aquelas prestadas nas prisões políticas por militantes barbaramente torturados, encarcerados por ligações com a guerrilha, como José Genoíno Neto, Ryoko Kaiano e Elza Monnerat – é que as primeiras informações sobre os eventos que cercavam o esforço de resistência e a violência perpetrada pelo regime terrorista civil-militar, no Araguaia, vieram à tona.

As matérias jornalísticas de Fernando Portela acrescentaram, ainda, um fascínio sobre o intento do Partido Comunista do Brasil (PC do B) que, em 1972, completava 50 anos em meio a mais encarniçada luta contra o regime despótico, sendo-lhe seu opositor mais radical.

A luta pela Anistia e o aparecimento do Centro Brasileiro pela Anistia (CBA), com sede na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro (RJ), em 1978, organizou nacionalmente não apenas a luta pela soltura dos presos políticos ou o retorno daqueles que se encontravam no exílio, mas, sobretudo, as famílias e militantes políticos que se davam conta de centenas de desaparecimentos forçados.

Aquela iniciativa, diante do governo do último general-presidente, João Figueiredo, ainda guarda atualidade porque o país ainda se debate sobre a localização e identificação de mais de uma centena de militantes mortos e sepultados como indigentes.

Tal esforço gerou a primeira caravana de familiares ao Araguaia em 1980, marco fundamental e verdadeiro divisor de águas na luta pelo direito à memória e a verdade no Brasil, parte indivisível do corolário da afirmação dos direitos humanos no país, no sentido dos de segunda geração – filhos da revolução francesa e da queda da Bastilha de 1789 – ou, seja, dos direitos políticos.

As indicações em sítios mortuários, como o cemitérios de Xambioá (TO) e de São Geraldo do Araguaia (PA), são daquela época.

Sob o cutelo do Conselho do Segurança Nacional que, a rigor, iniciava através do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (GETAT) a militarização das questões fundiárias na imensa área conflagrada da resistência é que irmãos, pais, mães, gente do clero, jornalistas e militantes sociais percorreram sertões, de Marabá até São Domingos das Latas, de São Geraldo até Xambioá, de Araguanã até a Boa Vista do Araguaia.

Para se ter uma idéia: em 1980 das 80 ocorrências de conflitos fundiários registrados no Pará 56 aconteceram em áreas na qual a caravana percorreu, produzindo 37 dos 45 assassinatos registrados em todo aquele imenso estado amazônico.

Todas estas informações estão disponíveis no livro Inventário da Violência – Crime e impunidade no campo paraense (1980-1989) de Ronaldo Barata.

Mas, a saber, quem afinal coordenou aquele ato de rebeldia que desafiou o regime senão o advogado comunista, assassinado poucos anos depois, também por liderar, nos confins da Amazônia, a luta contra a ditadura e o latifúndio?

A base jurídica defendida pelo advogado Luis Eduardo Greenhalgh, que em 1982 ingressou com a ação dos familiares obrigando a União a localizar e identificar os desaparecidos políticos no Araguaia tem, em suas digitais, as contribuições do advogado paraense.

Por fim, em 2007, a União é obrigada através da sentença da Juíza Federal Solange Salgado a dar cabo da localização e identificação daqueles desaparecidos políticos, revelar os seus algozes, locais e horas derradeiras onde a tortura, a mais grotesca das violências, anunciou a morte precoce de toda uma geração de brasileiros.

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