Takfirismo, Salafismo, Wahabismo. Mas o que é isso?

Os que acompanham o mundo árabe e islâmico pelos noticiários tem lido termos que não são usuais entre nós, de uma civilização judaico-cristã. Não estamos acostumados e nem sabemos bem o significado desses termos do título acima. Na coluna desta semana quero tentar ajudar os meus leitores no esclarecimento de alguns esses temas, complexos até para mim que estudo Oriente Médio há décadas.

O Islã como religião monoteísta é hoje a que mais cresce em todo o mundo. Enquanto outras confissões religiosas diminuem suas taxas de crescimento, o Islã é que apresenta o maior índice. Circulam pela internet apresentações e vídeo racistas e anti-islâmicos que tentam mostrar, com uma pseudo ciência inclusive, que em menos de 20 anos, a Europa cristã terá maioria islâmica.

Aqui alguns números para ilustrar o debate. De fato, dados estatísticos confiáveis, como o Livro dos Fatos da CIA – apesar de uma agência de espionagem e inteligência, uma publicação respeitável – indica a existência de 2,2 bilhões de cristãos contra 1,6 bilhões de muçulmanos em todo o planeta. No entanto, temos diversas correntes de cristãos e suas ramificações ocidentais e orientais. Aqui, se fizermos essa divisão, teremos 1,1 bilhão de católicos, de forma que, isoladamente, os muçulmanos seriam hoje a maior religião individualizada do mundo.

Outra observação que quero fazer é a demonização do Islã e dos muçulmanos. Por força de tentar ser um arabista e estudar aquele mundo há muito tempo, tenho que procurar entender e mesmo estudar a religião islâmica. Ainda que não pratique nenhuma fé ou crença, até como sociólogo, estudei e pesquisei muitas religiões. Li o Corão, livro sagrado dos muçulmanos. De todas as religiões que estudei e pesquisei (aqui implica frequentar cultos e ritos e ler livros e dogmas), nunca tive dúvidas: o Islã é a religião mais tolerante de todas elas.

Isso pode parecer um paradoxo, mas é a realidade. Não só pelo que dizem as suas escrituras sagradas em muitas passagens, mas pela prática cotidiana desde o século VII, quando Mohamed (Maomé) torna-se o seu líder supremo, chamado pelos seus seguidores de Profeta, que teria recebido de uma divindade as escrituras que foram compiladas pelos seus amigos mais próximos (ele era analfabeto).

Uma passagem histórica eu costumo citar como exemplo dessa tolerância. Foi quando os muçulmanos tomam Jerusalém nesse mesmo século. O califa Omar chega com sua comitiva e imenso exército e, sem realizar nenhum combate, ocupa a cidade pacificamente. O patriarca Sofrônius o recepciona em frente à Igreja do Santo Sepulcro e o convida para orar lá dentro da Igreja. Omar declina do convite. E explica o motivo. Ele disse saber o que aquilo significaria para seus seguidores e temia que eles quisessem construir uma Mesquita naquele local, destruindo a do Santo Sepulcro. Pois oraram ambos na porta da Igreja. Posteriormente, ali foi de fato construído uma Mesquita. Quando estive em Jerusalém, tive a oportunidade de conhecer esses dois sítios considerados sagrados.

Mas, esse é um dos milhares de exemplo que poderia dar aqui. O espaço é curto. Mas, porque temos essa imagem dos muçulmanos e árabes distorcida? Não é objeto deste artigo analisar a mídia e os filmes de Hollywood, mas existem estudos que mostram como a indústria cultural, há décadas, em especial a estadunidense, demoniza os muçulmanos e deturpa a forma como o Ocidente vê os árabes. O intelectual palestino Edward Said em Orientalismo foi fundo nessa questão e desvenda esse tema. O Oriente como criação do Ocidente.

As correntes políticas do Islã

Com o fim da URSS em dezembro de 1991, há 22 anos, o aparato industrial-militar, o complexo bélico, a indústria das armas nos Estados Unidos e nos países imperialistas periféricos, precisavam criar um novo inimigo que pudesse continuar justificando a venda e o comércio de armas. Ai surgiu o Islã e seus seguidores como pretexto.

Com a providencial ajuda de fundamentalistas islâmicos, que teriam praticado o atentado ás torres gêmeas em NY em setembro de 2001, o ódio e o preconceito contra muçulmanos ampliou-se a uma escala sem precedentes na história mundial. O então presidente dos EUA, George Bush, o filho, chegou a dizer que “uma nova cruzada” teria que ser feita pelos Estados Unidos, relembrando a tragédia dos séculos 11 e 12 quando cristãos europeus formaram as Cruzadas para “retomar” (sic) Jerusalém dos hereges e infiéis. Perderam a batalha e guerra. Na Jerusalém que conheci é residual a presença de cristãos naquelas terras.

Bem, como em todas as religiões, no Islã existem correntes políticas. Chamamos isso de Islã político. Vemos isso também no cristianismo e no judaísmo. Religiões devem ser assuntos de natureza privada. Célebres iluministas do início do renascentismo já resolveram essa questão. Coisas públicas e do Estado devem ser completamente separadas dos assuntos da fé, das religiões.

No Islã em particular, por um período houve o chamado “Califado”, quando Califas sucederam o Profeta Mohamed na tarefa de liderar um novo império. Isso começa em 630 e só vai terminar com o final da 2ª Guerra, quando dissolve-se o Império Turco-Otomano e todo o Oriente Médio é partilhado entre as potências da época, a França e a Inglaterra.

Saudosistas existem em todas as religiões. Os seguidores de Jesus sonham com um mundo governado, se possível, diretamente por ele. Seguidores do judaísmo, sonham com um mundo que pudesse ser governado diretamente com Moisés, que teria falado diretamente com uma divindade, quando esta lhe apareceu na forma de uma sarça ardente e lhe entregou mandamentos inscritos em pedra. Dessa mesma forma os muçulmanos, pelo menos os mais fundamentalistas, também sonham com a volta do Califado.

Ai residem os problemas. O Islã passa a ser político e passa a ter um projeto de poder em uma sociedade terrena, material. Pregam assumir o poder e implantar a sua religião para a sociedade, criar estados teológicos e religiosos.

Quero a seguir, fazer um resumo de três denominações e correntes islâmicas políticas, as mais importantes, que agem hoje em várias partes do mundo. A sua marca principal tem sido o terror. A implantação de suas ideias e propostas tem sido feito às custas de sacrifícios e de vidas humanas que já se somam centenas de milhares. Se os Estados Unidos invadiram o Afeganistão (em 2001) e o Iraque (em 2003), destruíram a Líbia em 2011 e agridem a Síria desde 15 de março de 2011, sob o completamente falso pretexto de “combater o terrorismo” (sic), hoje apoiam, armam e incentivam abertamente esses grupos terroristas em várias partes do mundo.

Quero apenas esclarecer que essas três correntes do Islã política que apresentarei a seguir atuam hoje em diversos países como grupos terroristas, praticando abertamente atentados de todas as naturezas contra populações indefesas e desarmadas. São sunitas fundamentalistas que se apegam aos princípios de um Islã medieval, que não evoluiu, que não se desenvolveu, que parou no tempo. São correntes de pensamento que sonham e almejam com o retorno de uma época onde existiam os Califas (século 7). Pregam um estado teocrático (islâmico), de costumes rigorosos e extremamente moralistas e conservadores, restringindo todas as liberdades e os direitos das mulheres, em especial.



Vamos aos grupos e correntes islâmicas

Takfirismo – A mais radical de todas as correntes. Ela vem da palavra takfir que, em árabe quer dizer “aquele que renega deus” ou simplesmente herege. Eles são defensores da pureza do Islã de tal forma que todos que não seguem a religião de linha wahabistas são considerados hereges. Ou se convertem ou devem morrer imediatamente. Isso contrária a base da religião islâmica, que é tolerante e aceita e protege as outras religiões monoteístas (cristão e judaica). Que não segue a sua linha wahabista radical é considerado infiel.

Isso vale para todos os xiitas (a corrente minoritária do Islã), mais os drusos, alawitas, sufistas. Eles aceitam que se matem pessoas inocentes ou que nada têm a ver com conflitos e de outras religiões, simplesmente pelo fato que não seguem a sua linha. São os terroristas mais sanguinárias que agem hoje na Síria, Iraque e outros países árabes. Aceitam explodir bombas em cidades, escolas de forma aleatória mesmo que morram pessoas alheias a conflitos. O maior exemplo desse grupo são os terroristas membros do grupo Al Qaeda. Sua forma de vestir e sua barba comprida típica lhes caracteriza imediatamente.

Salafismo – Surgiu no Egito em meados do século 18 e a palavra tem a ver com “predecessores”, com as origens do Islã, os princípios. Propunha a ser reformista para a sua época, quando todo o mundo árabe era dominado pelo Império Turco-Otomano (a figura principal do Império era a do sultão e não o Califa). Tentou modernizar o Islã, adaptando-o aos novos tempos modernos. Hoje, voltou a ficar radical, fundamentalista e intolerante. Abandonou o reformismo original e hoje também pratica atos de terrorismo abertamente nos países em que atua.

O centro irradiador desse pensamento hoje, considerado conservador, vem da Universidade El Azhar no Cairo, no Egito. O grupo da Fraternidade Muçulmana bebe dessa fonte. Vê-se que seus membros não vestem roupas árabes. Aceitam até ternos e gravatas, mas pregam a islamização das sociedades e restrições aos direitos das mulheres e dos costumes. No caso específico da Irmandade, o então presidente do Egito apoiou abertamente a ação dos terroristas na Síria para derrubar o governo do presidente Bashar Al Assad.

Wahabismo – Movimento ultraconservador surgido na Arábia Saudita no século XVIII e seu principal idealizador foi Muhammad bin Abd Al Wahhab, daí o nome wahabismo. Prega que os governantes tem que governar exclusivamente com base nos preceitos do Islã e da Sharia (a jurisprudência islâmica).

A chahada que é o “testemunho de fé” islâmica é a sua base. Fazem a defesa do monoteísmo e da unicidade da divindade, que é Allah. O Corão e a Sunna (costumes, escritos baseados na prática e na conduta de Mohamed, o Profeta, em vida) são a ideologia por assim dizer. Nem constituição o país precisaria.

Eles admitem que se persiga e que se matem sem piedade alguma todas as pessoas que não seguem o fundamentalismo corânico. É intolerante, completamente oposto ao que prega o Islã e seus princípios. Perseguem todos os que pensam diferente, mesmo muçulmanos, como os xiitas, sufistas, drusos e alawitas. Quantos aos cristãos e judeus, morte sem piedade.

A sua base central é a Arábia Saudita, mas tem raízes no Qatar e no Kuwait. Proíbem todo tipo de festividades e comemorações, mesmo as do calendário islâmico. Não se pode executar músicas, canto, consumir álcool, dança. É uma completa volta à idade média. Padronizam inclusive a forma de vestir e o corte de cabelo, entre outras coisas e costumes. Os monarcas do golfo e suas túnicas douradas e mesmo roupas brancas compridas parecendo saias para as pessoas comuns.



Conclusões

Qualquer que seja a corrente que um muçulmano participe acima, eles pregam abertamente a prática de atos de terror contra as populações que não seguem as suas orientações. Eles acabaram deturpando completamente os verdadeiros ensinamentos do Islã.

Não sou, é verdade, um especialista no Islã. Mas, o pouco que estudei e aprendi, descobri uma religião extremamente tolerante, protetora de todas as outras profissões de fé. Uma religião que busca a verdade e o conhecimento. Ao contrário do cristianismo, onde não é possível conhecer e saber tudo, o Islã incentiva o saber, o conhecimento. Por isso, durante o Império Árabe-Muçulmano, as ciências floresceram no mundo todo e em nenhum país que por eles foi ocupado, eles impuseram a língua árabe, nem seus costumes.

Como já disse o maior historiador inglês, Arnold Toynbee, é verdade que não há império bom. Todo e qualquer império que ocupe outros países é sempre ruim. Mas, se tivéssemos que escolher, de fato o Islã foi o império menos ruim, o que mais floresceu conhecimento e tolerância. Está ai a história a demonstrar.

O mais contraditório em tudo isso é o discurso dos Estados Unidos desde 2001 tem sido de combate decisivo aos terroristas e ao terrorismo. Mas, temos visto que suas alianças no Iraque, Síria, Líbia e Egito, tem sido nada mais nada menos exatamente com esses grupos terroristas, como a Al Qaeda, o Estado Islâmica do Iraque e do Levante e a Frente Al Nusra, entre outras. Tais grupos, que matam a sangue frio civis desarmados (decapitados) e comem seus órgãos internos, são os mais sanguinários terroristas que vimos na história, espalhando pânico em todos os lugares que chegam, com suas barbas compridas e roupas de túnicas longas.

Atitudes como essa acabam colocando as pessoas contra os muçulmanos em geral. De forma injusta, pois o que essa gente pratica nada tem a ver com os ensinamentos do Islã. Os verdadeiros muçulmanos repudiam essas atitudes e práticas. Por isso a Síria levou para a Conferência de Genebra de janeiro a proposta que toda a humanidade se uma para combater o terrorismo. Essa é a questão central. Mas, os Estados Unidos ignoraram completamente. Preferem seguir financiando esses terroristas.

No fundo, teme-se o crescimento do chamado Crescente Xiita, que seria um arco que engloba o Irã, a Síria, o Iraque e o Líbano, mas os grupos de resistência. Sabemos que a questão central no Oriente Médio não é religiosa, mas essencialmente política. Mas que de fato os xiitas hoje tem maior compreensão da luta anti-imperialista, isso é uma verdade que a vida nos mostrou.

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