Futebol muito além da Copa

Em 2006, escrevi neste mesmo espaço, no artigo “Uma Leitura Sócio-Cultural do Futebol” que “alienação, poder político e interesses mercadológicos são sinônimos de futebol”, pois sabíamos “sobre o tricampeonato, na Copa do Mundo de 1970, utilizado pela Ditadura Civil-Militar como propaganda de um País que ‘ia pra frente’, como já fora utilizado por Vargas como símbolo da unidade nacional durante o Estado Novo”. [1]

Que sabíamos “como, no lugar do debate político e social, (…) o futebol toma horas (…) nos bares e casas, com discussões apaixonadas, desgastantes e infrutíferas sobre o gol legítimo invalidado, o pênalti mal marcado, o impedimento não visto pelo juiz”, enquanto que “outro tanto da discussão se resume aos comentários risíveis e redundantes sobre imagens claras que são passadas e reprisadas, com opiniões banais de ‘especialistas’, como se o telespectador não tivesse condições de ver por si o que é transparente na tela da televisão”.

Que sabíamos como “o futebol foi transformado em uma das mercadorias mais rentáveis”, e que em época de Copa do Mundo isto era mais visível ainda, a ponto de que o risco da Seleção Brasileira não passar para uma próxima fase, envolve investimentos de bilhões. Disse também que o “futebol nos decepciona quando soubemos que alguns são convocados para esta ou aquela seleção para valorizar seu passe, enquanto outros são mantidos no time para aumentar o valor de venda, levando os torcedores, muitas vezes, a matar pelas cores de seus clubes ou seleções, “como marionetes de interesses subterrâneos do futebol”.

Porém, no referido artigo dizia que, para além da alienação, da manipulação e dos interesses de mercado, tanto da mídia como da política, portanto do capital, havia algo mais no futebol, senão como “explicar a paixão pelo esporte de milhões e milhões de brasileiros (…) a ponto de o futebol ser encarado como símbolo de uma identidade nacional, da “pátria de chuteiras”, espécie de síntese de nossa formação sócio-cultural”.

Passados 8 anos, volto a insistir: “independente de nossa vontade, em uma sociedade onde o capital transforma tudo em mercadoria, inclusive as pessoas, não poderia ser diferente com o futebol. Compreender isto, talvez, seja o primeiro passo, para que aqueles que “vivem do futebol” passem a questionar o sistema que os cerca. Não o futebol em si. Esta, como outras expressões históricas deverá ter maior permanência que as formações históricas que o criaram.

A simples “instrumentalização do esporte não explica sozinha esta forma contemporânea de relação social e cultural que ganhou milhões de adeptos em todo o mundo, em particular no Brasil. A música do Skank, especialmente para quem já foi a um estádio, sabe expressar muito bem a coisa linda que é uma partida de futebol”.

Parafraseio novamente Paulo Mendes Campos, “ao cumprir o dever e não driblar o seu destino, que era amar o futebol”, registrando em verso esta “sina”, pois como já disse, “sem deixar de amá-lo, o futebol pode ser entendido, analisado, julgado e ser visto além das simples oposições mecânicas entre alienação versus manipulação”, devendo ser visto também como “um domínio em que conflitos sociais e dilemas nacionais são postos em evidência”.[2]

No artigo, reprisei Nelson Rodrigues que dissera que “nossa literatura ignorava o futebol e nossos escritores não sabiam cobrar um reles lateral”, mas contrapus ao grande escritor que “aos poucos a literatura foi abandonando esta ignorância. Os historiadores também”, pois “desde a tradição da história social inglesa, o futebol entrou na seara das pesquisas. Visto como um meio de disciplinarização e dominação sobre os grupos excluídos, mas também como expressão cultural dos trabalhadores fora da fábrica”. Assim, “o futebol ganhou o espaço acadêmico”, sendo “tema do ensino nos bancos universitários e escolares”, sobretudo com o historiador Eric Hobsbawm, morto em 2012, nos mostrou que, “na Inglaterra, desde os últimos anos da década de 1870, o futebol já possuía uma modesta vida subterrânea como esporte para o espectador operário, se emancipando do patrocínio das classes média e alta na década de 1880, tornando-se cada vez mais parte do universo proletário, tanto para jogadores como para torcedores”,[3] o que viria a acontecer mais tarde no Brasil.

É importante ressaltar que na formação social brasileira, o futebol nasceu entre filhos de imigrantes e das chamadas elites, as quais impediram durante algum tempo os campeonatos entre as ligas dos bairros requintados e aqueles onde residiam pobres e operários. O Rio de Janeiro foi um exemplo. Mas a pressão social, através do futebol, rompeu o racismo ilustrado no “pó de arroz” dos jogadores negros, transformando o campeonato carioca de futebol, na década de 1920, em um único torneio, independente da origem social e étnica dos seus jogadores.[4] Quantos clubes “ferroviários” nasceram perto dos trilhos de trem pelo Brasil, como forma de ampliação do chamado mundo do trabalho?

Não custa nada repetir que sob o ponto de vista social, o futebol é o sonho dos garotos pobres da periferia para a ascensão social. Uma minoria chega lá e a Seleção é o maior exemplo. Seus craques viram ídolos e referência de vida para milhares de meninos que, diante da desigualdade, mas estimulados pelo individualismo liberal, vêem que seu talento no futebol é a saída para uma vida de fama e dinheiro. Este imaginário tem sido mais forte que qualquer debate intelectual e acadêmico sobre o tema. E que do ponto de vista econômico, mesmo que com sua lógica atual de mercado, o futebol gera emprego e renda. Precisa ser socializado e ampliado, pois por eles muitos garotos e garotas poderão sair da situação de rua. Isto vai além dos puros “interesses do mercado”.

Também vale a pena voltar a dizer que do ponto de vista cultural, o futebol tem sido a marca de sociabilidades que vão além de uma homogênea e artificial “identidade nacional”. Como identidade popular, manifesta nos milhões de adeptos, em especial entre os mais explorados da população, que deixam vazar por ele o sentimento de que alguma coisa pode unir os brasileiros, o futebol pode ser compreendido de forma mais ampla. Assim como a música para Graça Aranha, podemos argumentar que o futebol tornou-se manifestação de sensibilidade coletiva dos brasileiros. Podemos, então, questionar como ilegítima esta expressão cultural, assim como o samba e o carnaval?

Terminantemente, o problema não está no futebol em si. Sabemos que “a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever”, como já disse Eduardo Galeano, ao comentar que o esporte se fez indústria, o jogo foi convertido em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, ao mesmo tempo em que a tecnocracia do esporte profissional foi impondo velocidade e muita força que renuncia à alegria, atrofiando a fantasia e proibindo a ousadia.[5]

E, mesmo assim, continuamos apaixonados e querendo cada vez mais futebol em nosso País economicamente dependente e culturalmente desigual, como queremos comida, bebida, diversão e arte. Correto? Não é bem assim. Ao se aproximar a Copa do Mundo no Brasil, assim como na Copa das Confederações de 2013, os movimentos sociais vão às ruas para protestar por educação, saúde e moradia “padrão Fifa”, querendo muito mais dos que os limitados direitos conquistados no Brasil Republicano.

Por interesses políticos, como “partidos” da classe dominante que são, os monopólios dos meios de comunicação procuram pautar as manifestações públicas ou as utilizam para a manipulação, visando os pleitos eleitorais de 2014. Hipocritamente, quando quaisquer dos movimentos não aceitar a linha política destes meios de comunicação monopolizados, para o Partido da Imprensa Golpista, se transformarão em “baderneiros” e “vândalos”, sendo criminalizados como o foram no passado e continuam sendo no presente. São mais hipócritas ainda, mas isso é do seu DNA, quando nos programas jornalísticos aproveitam a Copa para a crítica ao governo, enquanto no meio e nos intervalos dos eventos esportivos ou jogos de futebol faturam milhões com o merchandising, a exemplo da Rede Globo que ganhará bilhões[6] com a Copa e o futebol em 2014, assim como o ex-craque e deputado federal Romário vem tendo o seu quinhão quando critica corretamente a FIFA e seu histórico de corrupção, mas não abre mão de ganhar com a Copa através de propagandas de chinelas ou de cerveja.

Resta ao governo, se quiser se diferenciar desta linha conservadora que vê as manifestações apenas como “caso de polícia”, a firme posição diante da violência fascista e despolitizada que se oportuniza da legítima manifestação de rua para seus propósitos políticos e criminosos, assim como saber diferenciar quem está e estará na rua, sem criminalizá-los a priori, pois a maioria continua lutando por direitos ainda tão restritos aos pobres do Brasil e que não serão corrigidos mesmo com as obras infra-estruturais “legadas pela Copa”, mas sim começarão a sê-lo com o rompimento definitivo da macro-política econômica neoliberal e o domínio do capital rentista, ainda em curso no Brasil.

Não sejamos ingênuos: é evidente que o Governo Dilma e a busca da sua reeleição se beneficiará com o Brasil Campeão do Mundo de Futebol em 2014, assim como setores de oposição, à direita e à esquerda, terão mais um argumento se o Brasil não conquistar o hexa, pois, como já disse o historiador Lucas Santos Café, “ao longo de sua breve história, o futebol sempre esteve ligado com questões políticas”, mas “o interessante é perceber de que forma o futebol se relacionou e se relaciona com a política, para percebemos que o este esporte está para além de um entretenimento ou um produto puramente econômico da sociedade capitalista, e para que possamos entender os diversos sentidos que o esporte pode ter, para cada grupo social”.[7]

E, como também afirmou o historiador e professor da PUC-Rio, Leonardo Pereira, “a própria história do futebol no Brasil fez dele uma arena privilegiada de conflitos e disputas sociais mais amplas, nas quais parcelas diversas da sociedade tiveram atuação ativa”. Assim, “o que a história de tais disputas sugere é que o grito ‘não vai ter Copa’ poderia ser bem substituído pelo antigo ‘a Copa do Mundo é nossa”, em uma lógica de reivindicação de direitos que pode fazer do evento um campo por construir”.[8] Este será o maior desafio dos movimentos sociais no Brasil de 2014, não a simplista consigna “Não vai ter Copa!”.

Insisto como já fizera no artigo supracitado. Independente da Copa no Brasil ou fora dele, continuaremos a lutar por um Brasil em que a oposição, cantada nos versos de Gabriel O Pensador, entre o Brazuca bom de bola, que deita e rola, e o Zé Batalha que só trabalha, que só se esfola, tenha fim, sem deixar de ver o futebol como parte de uma redenção coletiva rumo a um Brasil socialmente justo, independente de nossas classes dominantes e de governos comprometidos com elas.[9] Afinal, mesmo sabendo como o futebol e o carnaval são instrumentos de dominação do mercado e de alienação política, assim como o cinema, a música sertaneja, a “cultura popular”, etc., queremos ir para uma sociedade sem dominação de classe, mas com o futebol e o carnaval. Não queremos?

Referências

[1] Conferir o artigo, aqui em parte “requentado” e atualizado, escrito em 4 de julho de 2006, disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=228&id_coluna=14. Acesso em 24 mai. 2014.

[2] Sobre isso, cf. o artigo “Classe, etnicidade e cor na formação do futebol brasileiro” de José Sérgio Leite Lopes, In. BATALHA, Cláudio; SILVA, Fernando; FORTES, Alexandre (org.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004, p. 121-63.

[3] Ver sobre isso: O fazer-se da classe operária, 1870-1914. In. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 91-114,

[4] Um estudo aprofundado sobre este tema pode ser visto em PEREIRA, Leonardo. Footbollmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. O autor voltou ao tema recentemente. Cf. Disputas para além das quatro linhas. História Viva, Grandes Temas, n. 49, Futebol. São Paulo: Ediouro Duetto Editorial, abr. de 2014, p. 7 a 11. Ver também o artigo “Gols de letra” de Bernardo de Hollanda, Nossa História, ano 1, n. 6, abr. de 2004, p. 45-9. Ver também: Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 7, jan. 2006, com dossiê sobre o futebol, com artigos de Leonardo Pereira, Eduardo Galeano, Armando Nogueira, João de Almeida, Maurício Santoro e entrevista de Roberto DaMatta.

[5] GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 14.

[6] Conforme a TVFoco, “a emissora carioca espera movimentar no varejo cerca de R$ 2 bilhões com o licenciamento de 1.700 produtos oficiais da Copa”, pois “já foram fechados 90 contratos com 70 fabricantes”. A mesma fonte informa que “a Globo já faturou R$ 1,438 bilhão com a venda das oito cotas de patrocínio das transmissões do Mundial de 2014 e outro R$ 1,113 bilhão com as seis cotas do Futebol-2014 (as transmissões dos campeonatos regionais, Brasileiro, Copa do Brasil etc.)”. Cf. “Globo lança campanha pela Copa de 2014 e comemora lucro bilionário com o evento”. Disponível em: http://otvfoco.com.br/audiencia/globo-lanca-campanha-pela-copa-de-2014-e-comemora-lucro-bilionario-com-o-evento/. Acesso em 24 mai. 2014.

[7] Cf. Futebol, poder e política. Texto apresentado no I Encontro de História do

Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Disponível em: http://www.ufrb.edu.br/lehrb/wp-content/uploads/2011/08/LucasCaf%C3%A9.pdf. Acwesso em 24 mai. 2014.

[8] Cf. PEREIRA, op. cit., 2014, p. 11.

[9] KONRAD, Diorge Alceno, op. cit., 2006. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=228&id_coluna=14. Acesso em 24 mai. 2014.

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