Algumas palavras sobre cultura e política (Parte 5)

Um vento gelado foi sentido e o inverno chegou na primavera brasileira. O vento antecipava a chegada de uma tempestade. Uma “tempestade perfeita”, gíria para especulações internacionais, movidas por bolsas de valores, quando se pretende quebrar uma nação.

Não é tarefa fácil explicar, sobretudo para aqueles que sentiram o peso do cassetete na mão do Estado (cognitariado, professor, estudante, ativista, jovem da periferia), que todos somos vítimas de uma violência ainda maior. Mas engana-se quem pensa que foram apenas as forças públicas as responsáveis pelo Estado de exceção que promoveu prisões arbitrárias durante as manifestações de 2013-2014. As forças opressoras seguem ordens. Os Estados Nacionais perderam a soberania diante das corporações.

Esse estranhamento nas relações sociedade civil e poder público, ainda que não seja entendido por quem apanha, tem originem em uma orientação vinda do sistema financeiro global, de que os Estados adotem formas mais rígidas de lidar com as massas que emergem. Temem, os donos do capital, que nos roubam cotidianamente promovendo um saldo social negativo, que os levantes se tornem efetivamente populares.

Primaveras não são apenas caracterizadas pelo aquecimento ocorrido da mudança na inclinação do eixo da terra em relação ao sol. Mas representam simbolicamente o ressurgimento da vida e também a multiplicidade vibrante de formas de vida competindo pela existência. O Estado é o jardineiro (BAUMAN, 1999), o dono da casa manda podar. Não ao acaso a primavera no Brasil ocorreu no inverno.

Alguns podem se iludir com os verdadeiros efeitos de regimes extremamente capitalistas, em fim de namoro com a democracia, como bem lembrou Žižek (2011). Outros podem acreditar que o regime de exceção e o autoritarismo crescente foram instalados após as manifestações, quando, na realidade, para a periferia, nas zonas de pobreza do mundo, sempre esteve lá como a única regra. Quando uma prática se torna estrutural, apontar culpados é leviandade, não supor que todos de alguma forma são responsáveis seria inocência.

Iludem-se ao não abrir a perspectiva de que talvez seja uma ação de uma aliança ainda maior que impõem um novo regime mais austero ao mundo (contra os outros 99%). Esse novo mundo aparenta livre em termos de mercado, com promessas de direitos humanos (ao consumidor produtivo), com a aparência de democracia (ainda que representativa), quando na verdade apenas estariam em um novo tipo de ditadura dos ricos (a chamada plutocracia). O Estado de direito segue aparentando normalidade, os direitos humanos ainda existem no papel, mas na prática esses direitos, que antes eram respeitados e garantidos para apenas 20% da população, passam a existir agora para a ínfima fração, o grupo formado por apenas 1% que comanda o mundo (Occupy, 2011).

Os caminhos percorridos para que as manifestações brasileiras sejam reveladas como parte deste enfrentamento global são tortuosos. Ainda mais diante de tantos micro-conflitos locais, que vão desde partidos, milícias, a brigas pessoais e até traição amorosa, questões expostas ao centro da arena pública, como sendo realmente parte do conflito. Uma verdadeira fabricação espetacular, feita para distrair os espectadores.

Análise dos insurgentes segue diante de novos elementos que serão expostos um a um. Mas já não é mais possível seguir a leitura dos fatos sem passar pelo contexto histórico, bem como encadeamento das redes de relações, verificação de variáveis e desdobramentos. O recorte da leitura política será abandonada pela leitura da política. Somente assim, este interlocutor pode afirmar que: os conflitos nas ruas não ocorrem ao acaso, são agenciados por forças políticas e econômicas responsáveis pela pressão que provoca reação. A mídia como força mediadora é uma estrutura estruturante que reproduz os discursos dominantes.

Sendo portanto, os meios de comunicação, parte relevante que precisa ser observada, pois revelam (nas entrelinhas) as intenções do objeto em questão. A pesquisa passa a procurar fenômenos como democracia e participação, em meio as suposições de que os objetos seriam as ruas, os manifestantes, ou Estado, quando, na realidade, são uma pergunta mais especifica: quem lucra com toda a agitação?

Dando continuidade. Ao apresentar as sombras e quebradeira das ruas, desqualificar manifestantes, atacar de forma fulminante o governo, e se isentar de crimes de partidos políticos aliados, bem como ocultar interesses internacionais, a mídia demonstra claramente agir ao lado das elites nacionais e grupos corporativos internacionais (BORGES, 2009). A ditadura da informação que a mídia impõem é mais que comunicacional, é politica, economia e social, sendo ainda simbólica, ao determinar, ao público, o valor central da visão de mundo daqueles que estão no comando.

A construção da imagem negativa das manifestações de rua tem por objetivo usar movimentos, eliminar a legitimidade das manifestações, destruir princípios democráticos, mas antes de tudo, tem por objetivo dissimular a existência de um “inimigo” para criar pânico no povo, e dar aparato de propaganda de guerra para justificar a opressão.

O povo foi posto no espelho e em seu ouvido foi dito: “olhe, este é o inimigo”. Reconhecendo a própria face, com medo de ser o próximo, não reage. A construção dessa falácia, que impõem ao povo perda gradual da democracia, dos direitos de expressão e manifestação, cada vez mais tratados como “ilegais”, começaram a ser fabricados muito antes das jornadas de junho.
O clima de ódio e avanço do autoritarismo, agenciadores das ruas, tinham sido alertados por Marcelo Rubens Paiva, bem como as infiltrações em movimentos e suas intenções, foram reveladas logo em seguida em texto que escrevi em 19 de junho de 2013, reforçado por Paulo Henrique Amorim (Cf. SOUZA NETO), texto que promove reflexão similar apresentada na mesma data pela cientista social Marília Moschkovich, que observou o fenômeno em São Paulo.

O avanço do conservadorismo já estava na boca de legisladores, colunistas, celebridades, que promoviam a desinformação, o medo, a xenofobia, resultando no clima em que surgiram os manifestos. Quando as manifestações começaram, com algumas centenas de pessoas em cada capital, não foi difícil a cooptação e sequestro dos movimentos, majoritariamente de esquerda (quem vai negar a tomada da página do MPL?), por falas que eram a expressão de uma determinada camada social, com inclinação de direita, que acredita que vivemos em uma “ditadura de minorias”, um discurso tacanha do opressor ao estilo #PizzariaBrasil, que procura dissimular que as elites, são vitimas da existência da pluralidade social.

Quando as ruas foram sequestradas, pela bandeira #QueremosNossoPaísdeVolta (Lobão e Olavo de Carvalho), surgiu um grito de liberdade do opressor que no fundo diz: “morte aos diferentes”. A história todos sabem, as esquerdas e movimentos sociais (feministas, negros, indígenas etc.) foram atacados nas ruas pela direita, pelos ditos #Coxinhas que gritavam: “foda-se o Brasil!” Ainda que fossem nacionalistas, estes brandavam palavras de ordem que denunciavam uma “nação de merda”, a tal da “Banânia” (Cf. Parte 2 desta série), uma clara demonstração que determinadas camadas conservadoras negam a existência do povo brasileiro.

Depois que o #GiganteFoiDormir, o refluxo que voltou para as redes não foi uma continuidade? Aqueles que ficaram nas ruas quebrando, bem como as outras expressões que se manifestaram nas redes, não foram responsáveis pelo vômito do ódio, xenofobia e incoerência? Não cumprem aqui seu papel contrarrevolucionário, como agentes que carregam as palavras dos grupos que pretendiam criar um “inimigo” para justificar a retomada do poder? E os outros tantos que ficaram apanhando no lugar dos que quebravam, que papel cumpriram além de serem crucificados? Quem não sabe dos exemplos em que P2, Playboy, Anarcofascista, RudeBoy, mascarados quebraram, mas que professor de cara limpa foi quem apanhou e foi preso pela polícia?

Apesar da existência de experiências positivas nas ruas, como ocupações e assembleias populares que buscavam construir novas formas de organização políticas (Cf. Parte 4 desta série), expressões da “Ágora”, estas ilhas que buscam ressignificar a democracia ficaram isoladas. Mas ao contrário de uma primavera, o que foi propagado pela mídia foi a potência destruidora dos laços sociais. Durante o período de manifestações entre 20 de junho de 2013, com o sequestro do movimento que era do MPL, e os últimos atos feitos por black blocs em 06 de fevereiro de 2014, que resultou na morte do cinegrafista da BAND, Santiago Andrade, não faltou narrativa midiática. Um prato feito, bem preparado e aguardado pelas forças que salivaram por sobre a carne do morto e serviram como sendo prato dos movimentos sociais.

Desde então, o rescaldo da criminalização dos manifestantes envolvidos virou o assunto.

Enquanto as câmeras apontavam para um lado obscuro das manifestações, do outro, a cidadania seguia firme nos movimentos que buscavam legitimação a tantas causas, no geral locais, mas todas no contexto das lutas por direitos, liberdade, moradia, transporte etc.
A criminalização da sociedade civil vem sendo promovida sistematicamente pela imprensa. Mas quantos infinitos movimentos e seus discursos distintos precisam ser mapeados para que seja aceita a existência da polifonia? Não existem consensos entre manifestantes, se configurando cada vez mais como fragmentos de discursos, tendo apoio da maioria apenas a luta por direitos de expressão e manifestação. O que se manifesta no geral só pode ser entendido como expressão de indivíduos e pequenos grupos. Como podem na imprensa nivelar todas as falas como expressões do “perigo”, do “vandalismo” etc.?

Ao contrário de consensos, ou causas comuns, a fragmentação das falas permitiu que a oposição vinda da classe dominante fosse usada contra o povo, se valendo da ação dos manifestantes, sejam lá que discursos tivessem, suas falas foram direcionadas na grande mídia como peças publicitárias do caos. A quem servem as manifestações (sabendo ou não, os manifestantes), começa a ficar mais evidente.

A agitação fora das ruas contou também com elementos profissionais. Existiram relatos de que usuários anônimos de redes sociais manipularam dados, promovendo páginas com informações falsas, como por exemplo a petição do impeachment presidencial (AVAAZ, 17 de junho de 2013). O Anonymous Brasil, denunciado pelo próprio grupo internacional como uma ação independente, é para muitos uma ação de agência de publicidade a serviço do PSDB. O mesmo ocorreu no caso de eventos, chamando usuários para agitação, protestos e até conclamação dos militares para um golpe de Estado nas comemorações do 7 de setembro, em outro caso, a falsa Greve Geral convocada para o 01 de julho de 2013 (sem participação de sindicatos). Todas essas ações aparentemente criadas para gerar clima psicológico negativo.

O volume de material fabricado diariamente sugere, como alguns autores vem afirmando, que realmente estejam tentado a todo custo empurrar um clima de golpe de Estado. Isso fica mais claro diante das pilhas de relatos, vídeos, artigos e denúncias da suposta participação da mídia, de partidos políticos (Cf. Twitter), dando força para a agitação, ainda que todos tivessem interesses completamente diferentes. Artigos afirmam que Black Blocs e Anonymous seriam patrocinados pelo mega especulador George Soros. Seria o Brasil a bola da vez? Os elos de ligação entre ruas, mídia e grupos beneficiados pelo caos ficam mais evidentes como atitudes como a do Banco Santander e consultoria Empiricus, que recomendaram aos seus clientes a retirada de dinheiro do Brasil, sugerindo ainda que a derrubada do governo atual levaria seus investidores a obtenção de lucro. No lugar de “vandalismo” de manifestante, entram o vandalismo político, midiático e econômico, revelando os verdadeiros interesses.

Tem sido assim desde que as ruas passaram a fazer parte da operação “Tempestade Perfeita”, uma ação que pode ter começado nas primeiras marchas em 2011, mas que só foram sentidas pela nação no dia em que a rede “Globo quebra a grade e chama pro golpe” (AMORIM, 2013), engolindo as massas, deglutindo, vomitando, ressinificando, em uma antropofagia do “bom brasileiro”, que é jogado a serviço das forças hegemônicas.

O que importa é que o campo de guerra se alastrou, e esse comportamento de conflito retornou nas redes com os discursos tomados por obscenidades, ironia e cinismo, gerando uma verdadeira polarização das falas e grupos. Das ruas para as redes, o Facebook e Twitter viraram o novo campo de batalha, acirrando ainda mais as relações tensas já existentes. O discurso randômico e agressivo impera desde então. Onde pessoas são incapazes de argumentar, restam palavrões, chavões e esterótipos (#petralhas; #tucanalhas, etc).

Ocorre que essa multi-polarização entre os sujeitos e redes, que formam conjuntos de muitas vozes, se equivale a polifonia (Bakhtin), as assimetrias e disputas na poliarquia (Dahl), que diante da ausência de referências na sociedade líquida (Bauman) se perdem em vozes jogadas ao vento, que ampliam a sensação do esgarçamento do simbólico (Miller; Lacan), ou, nesse caso, do tecido social.

Se na aparência o quadro apresentado sugere negatividade, ao contrário, algo novo aconteceu. As redes se mobilizaram com enorme amplitude, rebatendo o poder e a mídia dominantes com ironia, pela primeira vez consolidando no Brasil como a emergência de uma nova força, construindo outras narrativas. O capital pode se valer das manifestações populares, tornar útil aos interesses dominantes, mas as redes demonstraram seu potencial de enfrentamento. Que discursos carregam tantas vozes? Olhares se lançam sobre as escritas, depoimentos, símbolos e contradições. Questões que retomaremos em outro momento desta série.
(continua)

AMORIM, Paulo Henrique. Globo Quebra a Grade, é Golpe. (2013). http://www.conversaafiada.com.br/brasil/2013/06/20/globo-derruba-a-grade-e-o-golpe/
BOBBIO Norberto. Teoria das Formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
BORGES, Altamiro. A Ditadura da Mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/ Coleção Vermelho, 2009.
MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos Estudos Culturais. São Paulo: Parábola, 2006.
MOSCHKOVICH , Marília. #MPL: 6 coisas estranhas. 20 de junho de 2013. http://midiacrucis.wordpress.com/2013/06/20/mpl-6-coisas-estranhas/
RANDOLFE DO PSOL. Twitter: 14:53 – 1 de mar de 2014 – https://twitter.com/randolfeap/status/439896349795172352
SOUZA NETO, Manoel J. In Paulo Henrique Amorim. Tem Cabo Anselmo aos Montes nas Ruas Conversa Afiada. (2013). http://www.conversaafiada.com.br/brasil/2013/06/20/tem-cabo-anselmo-aos-montes-nas-ruas/
UNIVERIDADE Nomade. A Copa do Amarildaço. 24/07/2014. Acessado em: Acessado em 24 de julho de 2014

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