“Sem Pena”, males do sistema

Documentário do cineasta brasileiro Eugênio Puppo discute a falência do sistema carcerário nacional e a dupla pena de suspeitos e condenados

O título deste “Sem Pena” sintetiza bem o impasses de milhares de presidiários brasileiros, pois significa a um só tempo sem condenação e sem complacência. A maioria deles amarga anos, se não décadas, no sistema carcerário sem julgamento e sentença que determine a pena e onde cumpri-la. Com esta abordagem, o cineasta Eugênio Puppo trata em 86 minutos da crise do sistema prisional e, portanto, de um dos impasses da estrutura político-social do Brasil.

Seu documentário foge às entrevistas 3×4, a câmera estática, a cobertura de imagens, estilo televisão, e a suposta objetividade. O espectador apenas escuta a voz do acusado (V.O) e se vê o presídio onde foi preso. E ele fica anônimo. Esta opção ajuda o espectador a sentir, a um só tempo, o dilema do acusado e as cruéis condições a que foi submetido.

Esta dualidade mescla o real e o imaginário, o simbólico e a metáfora situando o preso em seu universo. Ele foi acusado de ter atacado uma moça na periferia de São Paulo e trancafiado por cinco anos sem formalização de culpa. Nenhuma investigação foi feita para checar a veracidade das suspeitas recaídas sobre ele. O simples fato de ter sido “identificado” em condições duvidosas bastou para o sistema prendê-lo.

Estrutura judiciária do país é kafkaniana

Mais aterrorizante é o caso do jovem acusado de tráfico, que ficou dos 19 aos 37 anos sem culpa formalizada. Foi esquecido na cela, com risco inclusive para sua sanidade. Exemplo também enlouquecedor é o da mulher sem culpa definida, que perambulou de prisão em prisão, porque, mesmo já tendo sido absolvida, seu processo não chegava à autoridade que deveria libertá-la. Tampouco conseguia manter-se no emprego, pois tinha sempre de voltar ao presídio, mesmo estando livre para trabalhar.

Puppo ilustra esta letargia com movimentos de câmera em plano aproximado de frios corredores, enormes estantes de ferro cinza, abarrotadas de processos e de mesas com dezenas deles empilhados. Emerge daí a morosidade e a ineficiência da Justiça brasileira, em plena época de informatização para agilizar procedimentos legais. E levam ao absurdo universo dos filmes O Processo (Orson Welles, 1962) e O Castelo, (Michael Haneke, 1997), baseados em obras de Franz Kafka(1883/1924).

Se as narrativas dos “sem pena” tendem ao universo kafkaniano, as análises dos especialistas em sistema carcerário, dentre eles Nilo Batista, Luiz Eduardo Soares e Luiz Furgati, desvendam as deficiências do sistema carcerário nacional, em seus diversos segmentos. Incluindo a burocracia na tramitação dos processos, a demora no julgamento dos acusados, no cumprimento da pena em presídios abarrotados e no atraso na libertação.

Direita quer privatizar os presídios do país

No entanto, estas deficiências permitem surgir uma série de estruturas paralelas, que redobram a cruel carga sobre a sociedade brasileira. A mulher, cujo processo não andava, denuncia a propina exigida pelos funcionários, os especialistas o surgimento do crime organizado na estrutura carcerária. Além de recrutar presidiários, os núcleos organizados contratam advogados para defender os presos, ganham a confiança das famílias, expandem seus tentáculos e desafiam o poder do Estado.

Segundo o ICPS (Centro de Integração Nacional de Estudos Prisionais), do King College, de Londres, o Brasil tem a terceira população carcerária do planeta: EUA: 2,2 milhões, China: 1,7 milhão, e Brasil: 711.463 (Dado do Conselho Nacional de Justiça, de 05/06/2014). Destes 32%, ou 227.668 mil são provisórios ou “sem pena”. A maioria dos presidiários é negra, vinda de aglomerados, 75% do total cometeram pequenos furtos e cada um deles custa ao Estado R$ 1.500,00 mensais.

A crise do sistema prisional tem atraído as empresas administradoras de presídios, ansiosas para expandir seu mercado no país. Hoje existem 22 deles construídos, via PPPS (Parcerias Público-Privadas), em SC, ES, BA, TO e MG. Este foi inaugurado em 2013, na gestão do PSDB mineiro. Esta solução mercadológica leva em conta apenas a rentabilidade. Quanto mais presos, mais lucros. Seu elevado custo é de R$ 3.000 por preso, 100% a mais que o estatal. E seu objetivo não é a reinserção social do preso.

Não se deve fechar os olhos

Pela abordagem de Puppo depreende-se que nesta etapa capitalista da sociedade planetária a alternativa é dar acesso aos segmentos sociais marginalizados (e não só a eles) aos bens de inserção (educação, saúde, trabalho, lazer, etc.) e transformá-los em agentes sócio-políticos para reduzir a população carcerária e mudar o próprio sistema que incentiva a luta dos que não têm contra os que têm, como diz um especialista.

Com seu filme, Puppo soma-se a Caru Alves de Souza, que trata do jovem infrator, em “De Menor”. Se o adolescente carece de politização, com grêmios estudantis nas escolas, participação no movimento estudantil e militância nos partidos políticos, o presidiário deve obter sua dignidade e sua cidadania de volta. Caso contrário se tornará peça no mercado de presídios ou deserdado penal na caótica estrutura prisional de hoje.


“Sem Pena”
. Documentário. Brasil. 2014. 86 minutos. Música: John Cage. Montagem: Eugênio Pupgrapo. Fotofia: Jorge Maia. Roteiro: Eugênio Puppo/Marina Dias. Direção: Eugênio Puppo.


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