Corrupção de “abolengo”

Ainda nos idos de 2007, quando morava em Cuba, fui presenteado por um amigo nicaraguense, com o livro “La Oligarquia en Nicaragua”, de autoria de Orlando Núñes. A obra é daquelas que, a despeito de suas 366 páginas, inspira o leitor a devorar suas linhas em questão de horas.

Entre as várias passagens interessantíssimas do livro, um termo em especial, muito utilizado pelo autor, despertou minha curiosidade: “abolengo”. Por alguns dias fiquei a procurar o significado pleno desta expressão espanhola.

Descobri, por fim, que abolengo nada mais é que a ascendência de uma pessoa, mas, sobretudo se a pessoa é de uma família ilustre. Portanto, Núñes faz referência a essa palavra para chamar atenção a todo um extenso rol de preconceitos patrocinados justamente por “aquellas familias, autonombradas de abolengo y alcurnia, diferenciadas de plebeyos o marginados, (que) han gobernado y dirigido ideologicamente el subcontinente americano desde la Colonia hasta nuestros dias”.

A corrupção e a violência diária estampadas nos jornais – tanto da Nicarágua como aqui no Brasil -, evidenciam sempre os crimes cometidos pelos López, Martínez ou García; como aqui pelos Silva, Sousa ou Santos da vida. Até os dias atuais, nunca se via nos noticiários os delitos dos Camargo Corrêa, dos Mendes Jr, dos Andrade Gutierrez, dos Queiroz Galvão, entre outros “abolengos”.
No imaginário popular prevalecia a velha máxima: “ou se é Cavalcante ou se é cavalgado”. Em versos e em prosas, presente desde a música de Tião Carreiro e Pardinho – como o juiz “paulista da velha guarda, família de 400 anos” que enjeitou a leitoa enviada pelo mineiro no nome do italiano -, ou na literatura de Aluisio de Azevedo em “O Cortiço” – onde a riqueza de João Romão jamais seria suficiente para lhe dar o mesmo prestígio de seu rival Miranda que, embora menos rico, vinha de estirpe nobre portuguesa -, a notoriedade do berço sempre foi exaltada.

Os famosos crimes de colarinho branco são mais chiques. Não são iguais aos dos “descolarizados” ou dos colarinhos sujos. Têm até um toque de romantismo e uma aura sobrenatural que parte dos mafiosos capaz de seduzir o público. Coitadinhos. Bandidos sim, mas cheirosos e limpinhos.

Mas na atualidade, pela primeira vez na história de nosso país, estamos desconstruindo essa cultura de impunidade contra os criminosos de alta plumagem promovendo a investigação e a prisão de gente graúda. Um longo processo ainda está em curso, mas o primeiro passo foi dado e certamente representa um grande mérito desse governo atual.

O crime tem nome e sobrenome. Os criminosos também, independentemente de sua árvore genealógica e de seu abolengo.

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