Na prisão

O sol no Cariri purga o penitente de suas culpas. Adolfo Boiares não tinha culpas, mas observou com cismas purgativas o menino trajando batina de padre; tão escura a seda viscosa, misturando-se à cor terrosa do rosto, aos pés nus no chão de terra batida da praça com meia dúzia de bancos.

Era conduzido pela mãe, cuja palidez, inda que doentia, tinha traços de resignação por nunca descrer nas chances de melhora graças aos milagres de padre Cícero. O sol tinia na cabeça dos ralos transeuntes. Nenhuma queixa, nem mesmo dos troncos gretados de estrias das algarobeiras no quadrilátero acanhado da praça

Não deu tempo Adolfo Boiares presumir-se no juízo sobre a mãe e o filho penitentes. Antes de ajuizá-los incapazes de segurar uma carabina para assegurar a posse de um punhado de terras para o plantio, foi agarrado por três homens. Negou sem resistência, ser Adolfo Boiares. Quando ia ser solto, apareceu um outro, por certo o chefe.

– Esperem.

Boiares foi agarrado outra vez. O quarto homem tirou do bolso um retrato. Pôs a mão no rosto de Boiares, cobrindo o seu bigode.

– É ele mesmo. Ponham-no na camionete!

Há dois anos, Adolfo Boiares se pusera à frente de uma marcha de estudantes, para resistir à cassação de quarenta alunos do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco. A adesão à resistência se dera sem cálculos de perigos, de riscos. Usava uma camisa xadrez, em tons marrons e pretos.

Agora, preso pelos quatro homens, negando a identidade real, viu-se pisoteado no chão de borracha dura da camionete. A camisa, que resistira sem desbote ou manchas à reverberação do calor, do sol, foi forçoso enxergar que havia pouca diferença entre o algodão roto e o piso de borracha da camionete, com o bodum dos pés daqueles homens. Pés com solados marcados pela escolha de pisões cegos, duros.

– Tire a roupa! – ordenou o mesmo homem que o identificara pelo retrato.

Como tirar a roupa!? – pensou Boiares. Tirar a roupa seria o primeiro indício de capitulação.

Àquela altura, o preso tinha o rosto encapuzado.

– Confesse que você é Adolfo Boiares!

O silêncio foi seguido pelo bofetão no rosto. Os pontapés vieram em seguida. Logo viu-se sem roupas, pendurado no pau de arara. Os choques elétricos, nos testículos, além da dor, percorriam todo o corpo, infundindo a convicção de que toda a bolsa dos escrotos convertera-se num tição fumacento. Não abriu a boca para gritar. Da última vez que gritara, fizera-se ouvir rouco, cavernoso, do modo como previra o fim da ditadura. Mas berrara contra as cassações dos estudantes. A rouquidão da voz, inda que rompendo as cordas da garganta, davam conta da insanidade dos milicos que queriam pôr fim a seu fôlego. Não gritou. A boca ficou uma pasta de sangue, sem se mover por causa dos cortes dos próprios dentes jungidos pelos socos.

Os polícias encontraram no bolso de Adolfo Boiares, uma nota fiscal com seu endereço. Numa cidade próxima a Juazeiro, Jati, Jaciara Boiares, sua mulher, foi presa. Conduzida na mesma camionete que levara o marido.

– Cheire o piso que seu marido pisou – disse o polícia com os pés no rosto dela.

Na véspera, os dois tinham combinado que, se presos fossem, teriam os ossos triturados mas não se identificariam como marido e mulher. Trazidos para o Recife, submetidos a novas torturas, Boiares reconheceu os gritos de Jaciara sob os choques.

Tiraram-no da cela, viu Jaciara Boiares sentada com os mamilos e os pés presos aos fios elétricos.

– Você é ou não é Adolfo Boiares? – insistiram.

A estatura pequena da mulher, com os cabelos em desalinho cobrindo seu rosto redondo; tudo nela, sobretudo o nariz pequeno, ressonava a um cheiro acerbo de quem se tornara refém de répteis que se refestelam de babugem. Dar as costas à pequena Jaciara Boiares, tão ou mais miúda do que quando a pusera no regaço para enxergar no sonho carregado de promessas, a revolução que nunca traíram…?

– Sim, eu sou Adolfo Boiares.

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