“A Estrada 47", pânico no front

Desconhecido episódio no front italiano na II Guerra Mundial serve para cineasta brasileiro Vicente Ferraz mostrar soldados brasileiros em ação

Na mais simbólica sequência deste “A Estrada 47”, o pracinha Piauí (Francisco Gaspar) surge na aldeia de San Giusti, norte da Itália, carregando um moribundo na padiola. Ninguém, em princípio, lhe presta atenção, até descobrir que ele traz um prisioneiro alemão. Por instantes há estranhamento, porque sua chegada interrompe a apoteose pela liberação da rota que evitaria o ataque das tropas alemãs. Depois, tudo se esclarece.

Trata-se de um anticlímax, ou seja, o reverso do que se poderia esperar como recompensa ao soldado da FEB (Força Expedicionária Brasileira) por ter arrastado o prisioneiro de guerra, tenente alemão Jürgen Mayer (Richard Semmel), através de quilômetros neve, sob 25º graus. Perto dali seus companheiros do batalhão de caçadores de minas assistiam a alegria com que os italianos recebiam os soldados estadunidenses e não os viam.

São duas sequências, construídas pelo diretor/roteirista Vicente Ferraz, que traduzem a diferença entre o papel exercido por um país terceiro mundista e pelo império ascendente à época, embora aliados na guerra contra as nações do Eixo nazifascista (Alemanha/Itália/Japão). O que se vê ali, ainda que a Estrada 47 tenha sido liberada pelos pracinhas, é o falso mito de libertador estadunidense se impondo, via propaganda.

Filme é centrado em episódio desconhecido

Ferraz estruturou sua narrativa a partir de depoimentos de pracinhas e da biografia do escritor ucraniano radicado desde a infância no Brasil, Boris Schnaiderman, “Guerra na Surdina”. E centrou-a no desconhecido episódio do batalhão que em pânico, devido à proximidade do inimigo, provocou a morte de parte de seus companheiros. Vê-se então sem rumo, obrigado a se deslocar pelas montanhas geladas de Monte Castelo, com apenas quatro deles, para não enfrentar as tropas alemãs e italianas.

O choro de Piauí no abrigo e o atordoamento do engenheiro Guimarães (Daniel Oliveira), antes da fuga, refletem a falta de preparo para o combate, por terem vindo de país agrário, sem tradição de participar de grandes conflitos bélicos. No entanto, Guimarães age como a consciência do batalhão, em suas remoeções nas cartas ao pai, em que questiona o patriotismo, o objetivo de quem o mandou ali e da própria guerra. Às vezes, ele não ve saída num país estranho e numa inexplicável situação bélica.

Com este viés, Ferraz dá-lhe o tom psicológico, reflexivo. Além de Piauí e Guimarães, o sargento afrodescendente Laurindo (Thogun Teixeira) e o tenente Pena (Júlio Andrade) estão na mesma situação. Vagam pelas montanhas geladas e encontram o desertor italiano Giovani (Sergio Rubini) e depois alemães em igual condição. Forma-se não um batalhão, mas um grupo de desgarrados, com a agravante de o italiano não confiar no tenente Mayer.

Pracinhas se mostram condescendentes

No entanto, é através deste impasse que Ferraz discute a tendência do brasileiro à bonomia. Para os pracinhas, Mayer, ferido durante combate com eles, era prisioneiro de guerra deles. Mas, na visão de Geovani, estão sendo condescendentes. Quer a execução dele. “Vocês são uns soldados de m…!”, grita o italiano. Eles não cedem. E a relação pracinhas/Mayer evolui para vistas de fotos de família, conversa sobre futebol e samba cantado por Laurindo, com Piauí dizendo: o alemão é gente boa.

Geovani, pelo que se vê, não capitou o espírito deles. A proximidade terminou por fazer Mayer lhes entregar o que pretendiam e o objetivo foi, finalmente, alcançado. Entretanto, estranha-se Ferraz não ter explicitado a artimanha, usando mais a malandragem, o toque ferino para ludibriar o racional alemão. Resta a impressão de que Piauí o arrastou pela trilha congelada pela dupla razão de Mayer ser prisioneiro de guerra, estar ferido, e ser seu amigo. Sua expressão ao vê-lo se esvair bem o reflete.

Mesmo assim, há salutar reversão das convenções do filme de guerra estadunidense, como extensão do Pentágono, centro do imperialismo belicista estadunidense (O Mais Longo dos Dias, Ken Anakin e outros, 1962): patriotismo, heroísmo, machismo, coragem extrema, que torna o soldado uma máquina de matar (Sniper Americano, Clint Eastwood, 2014). Ferraz prefere lidar com situações que fogem ao grande espetáculo: explosões, bombardeios, combates corpo a corpo, que deliciam o público.

Brasil perdeu na II Guerra 2.533 pessoas

“A estrada 47” é um filme de grandes planos, em que os personagens se movem na paisagem congelada, desnorteados, num contraste entre os pontos escuros e a brancura da neve. E de sombras e escuridão em ambientes fechados. As elipses sobrevêm nas sequências de combates e há muitos planos de conjunto, numa variedade que o agiliza. É mais um filme de detalhes, sobre a guerra que custou ao Brasil 1074 soldados e 2.459 civis, num total de 2.533 mortos, de 25 mil pracinhas desembarcados em Nápoles, Itália, em 16/07/1944.



A Estrada 47. Drama. Guerra. Brasil/Itália/Portugal. 2015. 106 minutos. Trilha sonora: Luiz Avellar. Montagem: Mair Tavares. Fotografia: Carlos Arango de Montes. Roteiro/direção: Vicente Ferraz. Elenco: Daniel de Oliveira. Francisco Gaspar, Thogun Teixeira, Julio Andrade, Ivo Canelas.

(*) Festivais – Gramado/RS – Kikito 2014: Melhor filme, Melhor som.
Cine Ceará: melhor Filme, Melhor Direção de arte.

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