A serventia do Estadão

Na semana passada, o jornal Estado de São Paulo publicou mais uma provocação à União Nacional dos Estudantes (UNE). Com o título “A serventia da UNE”, o editorial do dia 19 de maio chama atenção pelo preconceito e, sobretudo, pelo destempero como insulta a entidade representativa máxima de todos os estudantes brasileiros.

A começar por esse linguajar tipicamente da elite paulistana, a qual o Estadão melhor representa. A “servidão” de qualquer movimento social, notadamente a do movimento estudantil – que historicamente se rebela às amarras de cabrestos e aos freios de embocaduras -, é justamente a de não fazer o papel de um “serviçal”.

Infelizmente não se pode dizer o mesmo de o Estadão que, há 140 anos, serve da maneira mais subserviente aos interesses das classes dominantes. No ano de sua fundação, 1875, servia aos interesses dos fazendeiros escravocratas paulistas. Em 1932, serviu (e aderiu) à luta armada contra Getúlio Vargas. Em 1964, serviu a legitimar e apoiar o Golpe Militar. Continuou servindo caninamente aos inimigos da democracia, ao negar apoio às Diretas Já, em 1984. Serve, até hoje, ao que há de mais reacionário e liberal na sociedade brasileira.

Em contrapartida, a UNE muito mais que servir, está para construir, juntamente com os milhões de jovens estudantes, um novo país. Para isso, sempre manteve uma posição de independência, tanto para criticar, como também para apoiar as ações de governos que atendam as históricas demandas estudantis.

Mais jovem (e jovial) que o Estadão, a UNE se opôs ao governo Getúlio no seu aspecto anti-democrático, mas o apoiou quando declarou guerra aos nazistas ou quando criou a Petrobras. Antes, durante e depois do Golpe de 1964, sempre se postou contrária à supressão dos direitos dos brasileiros, pagando com o sangue e a vida de vários dirigentes que morreram defendendo a democracia. Nas Diretas Já, mais uma vez, esteve na linha de frente das grandes manifestações, assim como na Constituinte de 1988 e no Fora Collor. No período Itamar, entendendo a complexidade daquele primeiro governo civil eleito, apoiou várias de suas iniciativas, sobretudo no campo da educação. Com a eleição de FHC e, consequentemente, os ataques à universidade pública e à soberania nacional, a UNE desempenhou papel de destaque na resistência ao desmonte do setor público pela onda privatista.

Com as eleições de Lula e Dilma uma nova conjuntura foi apresentada aos estudantes que, sem o direito de perder o trem da história, não hesitaram em apoiar as mudanças progressistas em curso.

Justamente em nome dessa independência, a UNE jamais se envergonhou em apoiar o aumento do PIB e a destinação de recursos do Pré-Sal para a educação. Jamais titubeou em enaltecer a retomada do Fundo Nacional de Assistência Estudantil, bem como a escolha dos reitores pela própria comunidade acadêmica (até o governo FHC, o reitor era escolhido pelo próprio governo de uma lista tríplice, que nem sempre era o mais votado). O mesmo aconteceu com o Prouni, o Reuni, o Ciência sem Fronteiras, entre outros programas que, mesmo com o mérito de cada um, não escaparam de críticas pontuais no sentido de se aperfeiçoarem.

Também em nome dessa independência e autonomia frente aos governos e empresas, a UNE sempre se posicionou contrária às altas taxas de juros e ao superávit primário elevado dos governos Lula e Dilma que, em boa medida, mantiveram a lógica dos governos passados. Não foram poucas as grandes manifestações da UNE em defesa de mudanças nas políticas econômicas, desde Palocci, Mantega e agora, com mais intensidade, com Joaquim Levy. Nessa mesma semana, a UNE estava nas ruas contra o contingenciamento de verbas para a educação e a regularização do Fies.

Mas ao contrário do que deseja o Estadão, a UNE jamais será massa de manobra de seus intentos golpistas. Jamais ganhará as primeiras páginas fazendo o jogo de seus queridinhos do Vem pra Rua, Movimento Brasil Livre ou Revoltados Online. Aliás, a quem serve essas três organizações e qual o grau de independência delas que nunca foram questionadas por esse mesmo Estadão?

Entretanto, o editorial do Estadão não para por aí. Vai além e subestima a maior organização estudantil da América Latina chamando-a de "correia de transmissão do lulopetismo" (nunca vi chamarem a Força Sindical de “correia de transmissão” do tucanismo). Fosse assim, a diretoria da UNE não seria composta pelas várias correntes de opinião que integram seu organograma. Uma coisa é certa: se for para fazer engrenar várias propostas iniciadas no governo Lula, tal como a expansão das universidades públicas (que durante o governo FHC foi quase nula) e a ampliação em todas as modalidades de bolsas (que durante o governo FHC decresceu), não há e não pode haver dúvidas sobre esse papel de, mais do que servir como uma “correia de transmissão”, ser um combustível para impulsionar essas conquistas.

O Estadão quer fazer crer que o apoio a essas medidas progressistas adotadas nos governos Lula e Dilma se deu de maneira patrimonialista, sendo a construção do novo prédio da UNE (uma reparação histórica do Estado brasileiro que incendiou a antiga sede durante o regime militar) uma forma de cooptação do movimento.

O sentido de patrimonialismo do Estadão talvez tenha mais a ver com o Estado gerencialista, do qual a direita é tão tiete. Não por acaso, foi durante os governos FHC que as chamadas entidades paraestatais (em colaboração) ganharam mais espaço e obtiveram reconhecimento legal. No caso da UNE, uma entidade do movimento social (terceiro setor), toda e qualquer relação com o Estado se dá por meio de convênios ou parcerias, ao contrário do Estado patrimonialista que, diga-se de passagem, muito regou os cofres da família Mesquita sem qualquer tipo de licitação. Mesmo hoje, por vias legais, o Estadão continua recebendo vultosas somas a título de publicidade dos governos, sem com isso querer ter a sua pretensa imparcialidade questionada.

Mylton Severiano escreveu “Nascidos para perder”, a história do jornal da família que tentou tomar o poder pelo poder das palavras – e das armas. Um livro que vale a pena ser lido e que expõe a vocação do Estadão para a conspiração, e a derrota. Ao contrário disso, a UNE tem uma história que a marca indelevelmente por sempre estar ao lado da democracia e das conquistas dos estudantes, com a independência necessária para se opor e apoiar as iniciativas dos governantes que atendam suas reivindicações. Não nasceu para ser derrotada nem pela ditadura das armas, nem pela ditadura da mídia.

Seria bom que o Estadão, principalmente quem escreveu esse editorial, participasse do próximo Congresso da UNE, que será realizado entre os dias 3 e 7 de junho, em Goiânia. Quem sabe lá, com a presença de cerca de dez mil estudantes de todas as partes do Brasil e do mundo, percebesse a pluralidade do pensamento que compõe a entidade representativa máxima dos estudantes brasileiros.

Pluralidade de ideia essa que tanta falta faz a um jornal que persiste, desde sua fundação, a propagar o pensamento único liberal, incorrendo na calúnia, na mentira e no golpismo.

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