“Sangue Azul”, olhar Brasil

Nesta mescla de misticismo, mitologia grega, ilusionismo e cultura popular, o cineasta pernambucano Lírio Ferreira passeia pela identidade brasileira.

O circo Netuno, em sua estada na ilha de Fernando de Noronha, termina sendo o catalisador das lembranças e aspirações de Zolah. E torna-se, assim, o microcosmo de onde afloram o misticismo, o sincretismo religioso, a mitologia grega, a música nordestina, traduzindo o ser de seu povo. É através deles que empreende a busca do que motivou sua mudança para outras regiões do país e, inclusive, para o exterior.

Esta sua tentativa de reencontrar-se o faz se apegar às concepções místicas do dono do circo Caleb (Paulo César Pereio) que, em crise de identidade, está sempre sumindo e reaparecendo, como se sobrevivesse a si mesmo. É um andarilho por falta de raízes. Isto se transfere para ele, Zolah, não devido à crise de identidade, sim por não conseguir superar os obstáculos que o impedem de concretizar uma paixão incestuosa.

Ferreira só insinua as agruras de Zolah

Ferreira, no entanto, não explicita suas buscas, apenas insinua. Como na sequência em que dança com a irmã Raquel (Caroline Abras) no salão do circo. Este recurso lhe permite introduzir uma série de situações que explicam o bloqueio de Zolah. Principalmente na criativa sequência em que a mãe Rosa (Sandra Coverloni) lhe revela porque o estimulou a deixar Fernando de Noronha. E desencadeia nele uma série de rememorações infanto-juvenis, gerando catártico choro, profunda dor e solidão.

No entanto, em seu retorno, Zolah não é apenas o vértice da paixão incestuosa, também se torna o “anjo exterminador”, ao desfazer vários elos de seu meio. A começar pelo uso que faz da fama. Devido ao assédio das fãs, se envolve fugazmente com elas; Cangú (Rômulo Braga) companheiro de Raquel, passa a beber, devido ao afastamento dela, após sua chegada; Rosa, preocupada, se entrega ao ritual de Iemanjá na praia para ajudá-lo, e os colegas do circo entram num ciclo de bebidas e erros em sua atuação.

Até a maneira de Ferreira enquadrar as mulheres reflete seu ponto de vista. Rosa é vista distanciada, em planos americanos ou à distância; Teorema (a cubana Laura Ramos), bailarina e namorada, sempre em closes, que revelam seu corpo e sensualismo; Raquel em plano aproximado e posição oblíqua na cama, expondo seu estado psicológico. Demonstra o esmero de Ferreira em dotar sua narrativa de múltiplos e criativos planos, tornando-a mais ágil e em consonância com a complexidade do tema.

Filme herda visão do Cinema Novo

Visto assim, “Sangue Azul” é uma obra sobre o desintegrar do homem diante das impositivas estruturas morais burguesas. Para se livrar delas, Zolah tem de romper suas amarras. O faz, como o enigmático (Terence Stamp), de Pier Paolo Passolini, em “Teorema”, (1968), ao desestruturar toda uma família através do desejo, sem resquícios de culpa. Diferente do casal de gigantes, da mitologia grega, transformado em pedra por se desejar, como o “pescador/narrador” (Ruy Guerra) narra às crianças.

Através do “pescador/narrador” e da divisão do filme em quatro capítulos (homem bala, insônia, angústia e lenda do pecado), mescla, inclusive, o misticismo, o sincretismo religioso, a mutação do popular na identidade cultural, numa referência aos temas recorrentes ao Cinema Novo (O Dragão da maldade contra o santo guerreiro, Glauber Rocha, 1969); Bye bye Brasil, Cacá Diegues, (1979). Nestes se tratava de visão terceiro-mundista, de resistência ao imperialismo e ao cinema dominante.

Além, disso, sua visão revela as influências neorrealistas de “A Estrada” (1954). Tentativa de Fellini de tratar o popular através do circo, igualmente, pondo Zampano (Anthony Quinn), a arrebentar simbólicas correntes que impedem sua libertação. Mas lhe dá um traço novo ao mutar o “homem mais forte do mundo” (Milhem Cortaz) num homossexual, reafirmando as escolhas homoafetivas, a exemplo do Pasolini de “Saló, os 120 dias de Sodoma” (1975), ao expor o perseguido e estigmatizado.

Além disso, Ferreira revela nesse “Sangue Azul” recorrências a temas que lhes são constantes. A do jovem (Selton Melo) que retorna a seu meio e o místico (José Celso Martinez Correia) que tenta ajudá-lo a superar suas inconsistências, em “Árido Movie”. E no filme em questão, o místico é uma espécie de hippie, saudoso da liberação de costumes e da elevação ao nirvana, dos anos 60. Mas cansado e desiludido para, junto com Zolah, se insurgir contra o que oprime ou até mesmo afrontar o sistema burguês.

Sangue Azul. Drama. Brasil. 2014. 74 minutos. Música: Pupillo. Montagem: Mair Tavares/Tina Saphira. Fotografia: Mauro Pinheiro Jr. Roteiro: Lírio Ferreira/Fellipe Barbosa/Sérgio Oliveira. Elenco: Daniel de Oliveira, Caroline Abras, Laura Ramos, Rômulo Braga, Sandra Coverloni., Milhem Cortaz, Paulo César Pereio, Ruy Guerra.


(*) Festival do Rio 2014: Melhor filme, diretor e ator coadjuvante.

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