Alienação na “greve pela greve”

Mais uma onda de greves se abate sobre as universidades e institutos federais. Tal como se atuasse no “piloto automático”, boa parte dos sindicatos e sessões sindicais representativos dos servidores públicos federais da educação perderam a capacidade crítica de se adequarem à nova conjuntura e de repensar as formas de luta de um movimento que vai muito além do simples cruzar de braços.

Até como forma de se valorizar esse estratégico instrumento de mobilização dos trabalhadores é que se deve impedir sua vulgarização. Não se pode aceitar a deflagração de uma greve, por mais legítima que seja, como quem inicia um festival ou uma gincana. Pior, banalizá-la de tal modo que, mesmo com as intensas conquistas alcançadas na educação superior nos últimos doze anos, tenhamos tido mais greves nesse período que em todo governo Fernando Henrique Cardoso.

O sindicalismo classista, de massas, é inimigo histórico das concepções pequeno-burguesas e de atuação sectária. A dimensão política não pode ser subjugada pela questão econômica com o risco de se alienar uma luta ampla em detrimento de práticas estreitas e isolacionistas.

Justamente sobre essa alienação, Karl Marx já alertava com propriedade esse importante tema em seus “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, escrito em 1844, e os seus desdobramentos em vários setores, inclusive entre os trabalhadores. Incrível como mesmo depois de 150 anos esses seus escritos tenham tanta atualidade.

Embora o senso comum rebaixe esse conceito à simples idéia da falta de espírito crítico e contestador do cidadão, o fenômeno da alienação é bem mais complexo e resulta em diferentes situações, sendo uma delas, talvez, a mais preocupante no presente momento: a “alienação do sujeito enquanto pertencente ao gênero humano”.

Em síntese, esse tipo de alienação impele o trabalhador a compreender sua vida circunscrita ao seu setor de trabalho, longe de se imaginar como parte do gênero humano, inserido em uma coletividade e membro de uma sociedade de classes complexa. Para esse trabalhador alienado, prevalece o específico, ele próprio, suas causas individualistas e a luta por sua pauta específica, personalista, separado da comunidade. E mais grave: avesso ao que se refere à humanidade.
Segundo Marx, em seus Manuscritos, “de maneira geral, a declaração de que o homem fica alienado da sua vida como membro da espécie implica em cada homem ser alienado dos outros, e cada um dos outros ser igualmente alienado da vida humana”.

Assim, a preocupação pela própria sobrevivência, em uma sociedade marcada pela pós-modernidade, que legitima e impulsiona sobremaneira os valores consumistas e hedonistas, contribui para que o trabalhador mire apenas em seus objetivos mais pessoais, voltado para sua própria existência (cobrado cada vez mais a desfrutar de bens e serviços de qualidade).

É justamente esse pensamento pós-moderno que incentiva ainda mais as pessoas a buscarem a felicidade individual como propósito único de vida, tal como se fosse um produto a ser comprado, e insensibiliza os trabalhadores a se solidarizarem com um projeto maior em torno da emancipação não apenas de sua categoria, mas de toda a classe operária.

Um exemplo disso é a pauta de reivindicações apresentada por alguns sindicatos em que o carro-chefe é a redução da jornada de trabalho de 40 para 30 horas. Bandeira das mais justas a ser empunhada caso estivesse inserida em um projeto maior, envolvendo toda a classe trabalhadora, preocupados com a qualidade da educação e conectada a uma realidade concreta em uma correlação de forças favorável. Mas não é esse o contexto.

Dessa forma, para o sindicato e para o trabalhador alienado, o importante é viver o momento, o aqui e agora, desconectado de um processo histórico e descomprometido com o futuro (que a Deus pertence). E o pior: sem envolvimento com a política geral e com a luta mais ampla envolvendo toda uma classe. Em tempos de crise, meu pirão primeiro.

Também chama atenção essa atuação solitária, individualizada, onde cada um se propõe a fazer sua parte em detrimento da organização coletiva e, de preferência, a partir do conforto de suas casas ao invés da luta presencial.

Ilustra bem esse fenômeno a fábula do beija-flor que, sozinho, tenta combater um incêndio e, quando indagado por um leão sobre o que estava fazendo indo e vindo freneticamente da floresta ao leito de um rio, ele responde que simplesmente está fazendo sua parte, jogando umas gotículas de água do seu fino bico nas chamas que queimavam suas flores. Ou seja, cada um fazendo sua parte, de forma individualizada, o resultado será sempre ineficaz. Mas, pelo contrário, o somatório da ação conjunta e organizada de cada indivíduo é capaz de salvar não apenas essa ou aquela flor, mas toda a floresta.

Muito mais louvável seria se o beija-flor, ao invés de travar uma luta insana e solitária contra um incêndio (por mais altruísta que seja sua intenção), se propusesse a organizar toda a bicharada para, unidos, darem fim à destruição. O saldo de quem faz sua parte sozinho, ou aquele que nada faz, no final, se equivale.

Por isso mesmo, a greve que mais uma vez se abate sobre o ensino público superior federal no Brasil pela enésima vez, além ter se banalizado, mostra-se cada vez mais alienada. É na base do cada um por si e o sindicato por todos, com o conjunto da comunidade acadêmica e da sociedade em geral totalmente descolados do processo.

É nessa seara que o elemento consciente, através dos trabalhadores e sindicalistas comprometidos com a luta mais ampla, que envolve toda a classe operária inserida em um projeto humanitário, deve cerrar fileiras contra a alienação dos que se apóiam somente, e tão somente, no espontaneísmo de ações movimentistas que têm um fim em si mesmo.

Bibliografia consultada:

LOSOVSKY, D. Marx e os sindicatos. Editora Anita Garibaldi. São Paulo, 1989.

MARX, K. Manuscritos Economico-filosóficos. Boitempo Editorial. São Paulo, 2004.

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