“A Nação Que Não Esperou Por Deus", ode ao Índio

As mudanças sócioeconômicas na vida dos kadiwéus e sua luta para não perder suas terras são os temas do documentário da cineasta Lucia Murat.

cA frase após os créditos finais deste “A Nação Que Não Esperou Por Deus” é como um soco no estômago do espectador. Surge naturalmente, confirmando o prenunciado pelo cacique kadiwéu Ademir, que dizia estar ameaçado de morte. O impacto da informação brota não apenas dos impasses na região de Bodoquena, Mato Grosso do Sul, mas, também, da empatia criada por ele com o espectador.

É através do líder indígena que Murat abre o leque das situações abordadas neste documentário, espécie de revisitação ao cenário de seu filme “Brava Gente Brasileira” (2000), em que registra a vida da mesma tribo. E trata, assim, da aculturação, da elevação da consciência e da organização da tribo para viver não em aldeia, mas no povoado kadiwéu.

Nele emerge a estrutura urbana, por meio dos galpões para festas, onde se dança forró, as casas de alvenaria, a escola, a assistência à saúde, as relações de subsistência e o sonho de cursar faculdade (existem índios formados em Direito). Sem contar a religião, configurada nas duas igrejas evangélicas e na Bíblia traduzida para a língua kodiwéia, sem diluir seus costumes e crenças, formas de resistência ainda prevalecentes.

Aculturação traz novos desafios

Esta configuração vem das falas de Ademir, de índias e índios. Das garotas e garotos que mantém o ritual de iniciação adulta, diferente só nas vestes e no local onde se dá (antes era ao ar livre, agora é no galpão). A câmera de Murat e de seu codiretor Rodrigo Hinrichsen, como se vê, circula pelo povoado detendo-se em seus diferentes aspectos. Foge, assim, ao exótico, ao primitivo, avançando para as implicações da entrada dos kodiwéus na estrutura sócio-político-econômica capitalista.

Esta mudança não escapa às suas lideranças, como demonstra o cacique Ademir em várias sequências do filme. Numa delas, ele fala sobre a transição da antiga aldeia para o povoado e a necessidade de avançar para novas formas de organização. Isto inclui a discussão coletiva, a atração dos mais novos, o melhor aproveitamento dos 500 hectares, demarcados no início dos anos 70, onde hoje vivem 200 kadiwéus, divididos em três tribos. “Temos de ver o que é melhor, se a pecuária ou a agricultura”, diz, numa região cuja tendência é o agronegócio.

Este é, aliás, o eixo que norteia os entrechos do filme. Por meio dele, a dupla Murat/Hinrichsen matiza os conflitos entre os kadiwéus e os latifundiários que invadem suas terras. Duas sequências atestam as visões opostas de ambos. Na primeira os índios se reúnem para discutir o que pretendem discutir com os latifundiários, aventando a possibilidade de convivência pacífica com quem invadiu suas terras, tendo vários processos na Justiça para recuperá-las.

Latifundiários querem o índio como escravo

Mas é na segunda sequência que as diferenças e intenções entre eles se evidenciam, refletindo diferentes visões da utilização da terra. Enquanto os kadiwéus propõem parcerias, mantendo os projetos de cada um, os latifundiários querem que uma família indígena de oito pessoas trabalhe para eles por R$ 500,00 mensais. O que a transforma em mão de obra barata, maximizando o lucro deles e mantendo-a como escrava.

As duas sequências terminam expondo diferentes realidades dos povos indígenas. Enquanto várias tribos mantém o meio de sobrevivência primitivo, outras foram absorvidas pelas estruturas capitalistas. O que põe a luta em outro nível. Consciente disso, Ademir fala da necessidade de seu povo ter seus próprios representantes no parlamento, pois a disputa pela sobrevivência não é só econômica, mas, sobretudo, política.

Seu universo não se circunscreve ao campo, seu olhar vai além. É como se o combate iniciado há séculos (“O primeiro invasor de nossas terras foi Pedro Álvares Cabral, lembra ele) tivesse imposto outra tática a eles. Hoje dirigem suas vans de cabine dupla e conduzem seu gado em cavalos de raça, podendo ampliar seus negócios por meio de cooperativas.

Jovem kadiwéu teme o Estado

As novas gerações de kadiwéus já nascem com a ideia de que estão entregues à própria condução. O jovem frentista Adilson, que mora e estuda em Campo Grande, quer voltar a seu povoado para manter sua terra, pois desconfia que, de repente, o Estado possa tirá-la. Não sem razão, os letreiros finais dão conta disso ao informar que a Justiça deu ganho de causa aos latifundiários que invadiram suas terras. E com o agravante de Ademir ter sido assassinado em 2014, um ano depois de encerradas as filmagens, confirmando seus temores.

Murat e Hinrichsen rompem, desta forma, com a imagem do indígena preso ao primitivismo. Incapaz de, sem perder a noção do coletivo, tomar a si a condução de seu povo. Seus entrechos abordam inclusive a miscigenação, ao mostrar a professora loira casada com o kadiwéu e suas noções de machismo e liberação feminina. E transformam, assim, seu filme num testemunho da luta do líder/cacique Ademir e de seu povo, atestando a urgência da luta popular para defender a democracia da sanha direitista.

A Nação Que Não Esperou Por Deus. Documentário. Brasil. 2015. 89 minutos. Música: Lívio Tragtenberg. Montagem: Mair Tavares/Lucas Cesário Pereira. Fotografia: Leonardo Bittencourt. Roteiro/direção: Lúcia Murat/Rodrigo Hinrichsen.

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