“Dheepan – o Refúgio”, largados no gueto

Em filme premiado em Cannes, cineasta francês Jacques Audiard questiona política de guetização de refugiados em comunidades dominadas por gangs.

Nada mais apropriado para o espectador entender as motivações dos jovens franceses descendentes de árabes para aderir ao Estado Islâmico (EI) do que assistir este Dheepan – o Refúgio”. Não que o diretor Jacques Audiard e seu corroteirista Thomaz Bidegan os façam protagonistas deste drama sobre o tratamento dado pela França aos refugiados. Pelo contrário, os personagens são os cingaleses Dheepan, sua “companheira” Yalini e sua “filha” Yllayaal.

Em meio aos conflitos entre o exército e os guerrilheiros dos Tigres do Tâmil Eelan (1983/2009), eles são obrigados a se refugiar na França. E acabam num conjunto habitacional precário na periferia de Paris, dominado pelo narcotráfico. Ou seja, escaparam do Sri Lanka, ex-Ceilão, onde viviam sob o fogo da guerra civil, para “viver” em meio a tiroteios, ruas cheias de lixo, elevadores quebrados e redes de água e energia elétrica danificadas.

Com este quadro, Audiard estrutura sua narrativa, mostrando os cingaleses se esforçando para sobreviver numa zona de exclusão. Nela as “normas” são ditadas pelo africano Youssuouf (Marc Zinga), que se equilibra entre Dheepan (Antonythansa Jesuthasan), agora zelador, e a gang liderada pelo jovem franco-árabe Brahim (Vincent Rottiers). São eles que suprem a ausência do Estado francês, que não lhes oferece alternativas para além da delimitada área.

Yalini é olhar questionador

A situação, no entanto, é difícil em qualquer lugar. Yllayaal (Kalieswari Srinivasan), matriculada numa escola pública, é vítima bullyng e racismo por ser asiática de pele negra e cabelos escorridos, como as indianas. E Yalini (Claudine Vinasithamby), tida por sua mãe, mas que na verdade se uniu a ela e a Dheepan para fugir do Sri Lanka, se torna faz tudo de Brahim, que cumpre sentença em casa, vigiado por meio de tornozeleira eletrônica.

É nela que o olhar crítico Audiard se detém . Tudo conspira contra ela: perdeu dois filhos nos conflitos armados em seu país, vive distante de Dheepan e não se entende com Yllayaal. Sua única saída é se refugiar na Inglaterra onde vive sua irmã. Mas, para isso, depende de Dheepan. Ele, sim, ignora o clima de guerra por ter vivido anos sob fogo cerrado e as gangs não interferirem em seu trabalho ou ameaçar os seus.

Audiard, porém, dota a narrativa de variações que a tornam leve. Principalmente quando Dheepan, Yalini e Yllayaal participam de piquenique às margens do lago com refugiados de seu país. Apesar da opressão, eles confraternizam, numa sequência dotada de lirismo. Mas busca também flagrar Dheepan em instantes de inquietação. Em flashback surpreende-o numa sala sendo pressionado por seu irado ex-líder a voltar à guerrilha.

Dheepan só tem a si mesmo

Noutra variação, transformada em subtrama, ele, Audiard, trata da aproximação de Yalini e Dheepan, tornando-os de fato um casal, tendo Yllayaal como filha. O que o leva a cair no clichê hollywoodiano, de fazer o herói arriscar a vida para salvar a amada. Mas, contraditoriamente, é também sua forma de atestar que eles foram tão negligenciados pelo Estado francês que tiveram se valer de si para sobreviver às gangs.

Desse modo, o espectador compreende as razões dos jovens franceses de origem árabe, africana ou asiática para aderir ao IE. Eles já vivem desempregados, sem perspectiva de serem absorvidos pela estrutura político/sócio/econômica historicamente excludente. Isto num país onde 1/3 dos 65. 447 milhões de franceses são de origem estrangeira. E que participou de todas as coalizões lideradas pelos EUA nos últimos 15 anos.

Este quadro vem sendo engendrado desde a “Guerra do Golfo” (02/08/1990 a 28/02/1991), no Governo George Bush, pai (1989/1993), para manter o controle do Oriente Médio e a suposta segurança de Israel. Mas incentivou a criação da Al Qaeda (1988), por Osama bin Laden (1957/2011), sobre os escombros da Guerra Afegã-Soviética (1979/1989), onde atuou como agente da CIA contra a URSS. Assim, a “Guerra ao Terror”, urdida por George Bush, filho, após a queda do Word Trade Center, em Nova York, em 11/09/2001, foi tão só consequência dessa política imperialista.

O terror é de parte a parte

A forma que essa política assumiu na derrubada de Saddan Hussein, no Iraque (2003), de Muamar al-Gaddafi, na Líbia (2011) e a tentativa de deposição de Bashar Al Assad, na Síria, e o consequente fracionamento destes países, levou à divisão da Al Qaeda, ao surgimento e à radicalização do EI e à crise dos refugiados na União Europeia (EU). Daí o choque provocado tanto pela barbárie da coalizão EUA/EU quanto pelos ataques terroristas do EI, num instante de crise neoliberal.

Por outro lado, o desfecho dado por Audiard foge às foge às facilidades dramatúrgicas. Yalini, após o confronto de Dheepan com as gangs, convence-o a se refugiar na Inglaterra. Talvez uma tautologia, pois dado ao envolvimento deste país nas coalizões, nem lá pode estar segura.

”Dheepan – O Refúgio” (Dheepan). França. Drama político. 2015. 114 minutos. Música: Nicholas Zil. Montagem: Juliette Walfling. Fotografia: Eponine Momenceau. Roteiro: Jacques Audiard/Thomas Bidegan. Elenco: Antonythansa Jesuthasan, Claudine Vinasithamby, Kalieswari Srinivasan, Vincent Rotteirs, Marc Zinga.


(*) Festival de Cannes 2015. Palma de Ouro

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