Picaretas com anel de doutor

“Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou
São trezentos picaretas com anel de doutor”.

“Luís Inácio”, de Herbert Vianna

“Há no congresso uma minoria que se preocupa e trabalha pelo país, mas há uma maioria de uns trezentos picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. Este foi o veredito proferido por Lula, em setembro e 1993, causando um tremendo bochicho na esfera política, uma vez que, obviamente, nenhum parlamentar se considerava picareta.

A frase ganhou destaque ainda maior dois anos depois, quando Herbert Vianna criou e os “Paralamas do Sucesso” (com participação de Jairo Cliff, da banda reggae “Lord Maracanã”) incluíram em seu disco “Vamo Batê Lata” a música “Luís Inácio”. Os primeiros versos estão na epígrafe deste artigo.

Ofendido, em nome dos seus pares, o então procurador da Câmara Federal, deputado José Bonifácio de Andrada, pediu e o Ministério Público Federal proibiu a música nas emissoras de rádio e nas lojas de disco.

Passados 23 anos daquela frase de Lula, verifica-se, a julgar pelo que se viu na votação do último domingo, na Câmara dos Deputados, que a picaretagem segue resiliente – e cada fez mais agressiva e desavergonhada – entre a maioria (de pouco mais de dois terços) que golpeou a democracia e votou pela admissibilidade do “impeachment” da presidente Dilma Rousseff. Consolidou-se o vasto território do baixo claro, dos que, como constatou o ex-presidente, “defendem apenas seus próprios interesses”.

A votação de domingo marcou, pelo menos até o momento, talvez o paroxismo de uma trama reacionária e golpista que já vem de longe, revelando a miséria a que chegou o parlamento brasileiro, hoje motivo do sarcasmo e da crítica da mídia e da opinião pública internacional. Além do conteúdo do voto, a forma de sua expressão pôs à mostra a assustadora indigência intelectual e moral dos defensores do “impeachment”.

Aqui neste Vermelho, a jornalista Mariana Sefarini produziu ótima matéria (“Pela paz de Jerusalém e outras pérolas em defesa do golpe”). Ao invés de examinar e decidir estritamente com base nos dois pontos que levaram ao pedido de impedimento da presidente (as tais “pedaladas fiscais” e os decretos orçamentários), a grande maioria dos parlamentares proporcionou um espetáculo grotesco com as mais ridículas e despropositadas justificativas de voto. Um “show” circense que envergonha o Brasil.

Como frisou a jornalista Teresa Cruvinel, em sua coluna no jornal digital 247, “foi um desfile de declarações de voto sem a menor compostura política ou jurídica para o momento”. Zé Simão chamou a sessão de “mistura de hospício com escolinha do professor Raimundo”.

Com pose e eloquência (mas algumas vezes só gritando), enrolados em bandeiras e portando cartazes, gesticulando como que endemoniados, parlamentares sucediam-se diante do microfone, como nos relata Mariana Serafini: votavam a favor do “impeachment” pela “minha família”, “em homenagem aos meus filhos”, “pelos meus netos”, “pela Manoela, que vai nascer”, ou “pela minha mãe que está em casa com seus 93 anos” e daí por diante.

Alguns invocaram a religião: “pelos fundamentos do cristianismo”, pela “família Quadrangular”, “pela renovação carismática”, “pela nação evangélica”. Havia os que, pretendendo conferir às suas justificativas um verniz, digamos, mais “politizado”, esgoelavam questões que nada tinham a ver com a matéria em discussão (traindo, na verdade, seu arraigado preconceito de classe), como “o fim do PT”, o “fim da CUT e seus marginais”, o “estatuto de desarmamento” e a ação da “querida Polícia Militar de São Paulo”, contra o “comunismo que assombra o país”.

Não foi por menos que o site do semanário alemão Die Zeit, citado por Teresa Cruvinel, afirmou que a votação na Câmara "mais parecia um carnaval". O que dizer da deputada mineira que, berrando “sim, sim, sim” e brandindo uma bandeira nacional, dedicou seu voto ao marido, prefeito de Montes Claros, que no dia seguinte seria preso numa operação anticorrupção da Policia Federal? E o que dizer de uma sessão presidida pelo comprovadamente corrupto Eduardo Cunha, que se o golpe se consumar será vice-presidente da República? E das dezenas e dezenas de parlamentares envolvidos com a roubalheira, mas que ali, diante do microfone, e com o devido histrionismo, proclamavam seu voto pró-impeachment em nome da luta contra a corrupção? Já o deputado Jair Bolsonaro superou-se como fascista-mor, papel que exerce com devoção. Dedicou seu voto à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sanguinários torturadores da ditadura militar, que tem em sua conta nada menos que 60 assassinatos (sob tortura) de oposicionistas..

Enfim, não custa muito a um observador isento e razoavelmente perspicaz da cena política brasileira concluir que o atual parlamento está à margem, não só da decência e da qualidade moral e intelectual mas, sobretudo, dos interesses do povo e dos desafios que a nação tem diante de si. À comunidade internacional vem causando espécie que a sétima economia do mundo possua um parlamento tão ordinário, tão desqualificado, tão venal.

É claro que a sessão de domingo não se resume a tal espetáculo de preconceito e mediocridade. Sugere, a sessão (classificada pelo escritor português Milton Tavares, que não tem nada de esquerdista, como “uma assembleia de ladrões”), um fenômeno político estrutural de acirrada luta de classes, que vem sendo exaustivamente analisado por comentaristas e cientistas políticos. Mas o “show” de domingo, por hilário e trágico a um só tempo, ganhou um destaque quase dominante no noticiário.

Mas voltemos aos picaretas mencionados por Lula. Estão aí, ou melhor, lá. Diria Nelson Rodrigues: “Os picaretas perderam a modéstia”.

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