“Nise – O Coração da Loucura”, encanto de viver

As batalhas da psiquiatra lagoana Nise da Silveira para consolidar a terapia do inconsciente são o tema do filme do cineasta carioca Roberto Berliner.

Nise da Silveira não era uma, mas várias. Neurologista, psiquiatra, comunista, feminista, escritora. Daria um épico. Sua vida cobre 94 anos (1905/1999) da história política e psiquiátrica do Brasil. Contudo, o cineasta Roberto Berliner se concentra nos poucos anos em que ela instala, a partir de 1946, a Secção de Terapêutica Ocupacional, do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. E, ao criar a “terapia do inconsciente”, revoluciona a psiquiatria brasileira.

Esta opção de Berliner e de seus corroteiristas Leonardo Rocha e Patrícia Andrade leva-os a centrar a narrativa em suas tentativas para identificar as inconscientes aflições dos desenganados pacientes do Centro Psiquiátrico. Mesmo trabalhando com precária infraestrutura e reduzida equipe de enfermeiros, ela se multiplica num ambiente machista e conservador. E, ao invés dos ultrapassados métodos para tratar dos pacientes esquizofrênicos, usa a “terapia do inconsciente” para curá-los.

Eles integram, em “Nise – O Coração da Loucura”, o coletivo de pacientes, cujo alívio da aflição se configura em forma de arte abstrata, figurativa ou escultura. Isto permite a Nise diagnosticar a raiz da esquizofrenia, pois enquanto analisa a evolução do tratamento, ela rompe com a figura do psiquiatra à qual se atribui autoridade e poder. E decreta a inutilidade do sistema por ele usado ao atestar a validade de seu método.

Nise se vê num circo de horrores

É desta estruturação que a narrativa retira sua força e estabelece as contraposições entre sua terapia e a dos demais psiquiatras. Logo ao chegar ao Centro Psiquiátrico, Nise assiste à exposição de dois deles. Um utiliza uma espécie de estilete para a lobotomia e o outro o equipamento de eletrochoque, que faz o paciente Fernando Diniz (Fabrício Boliveira) se contorcer de dor e desmaiar. O bastante para ela ver o “circo de horrores”.

Em oposição ao transportacionismo de terapias estrangeiras, como faziam outros colegas, seu método terapêutico era interagir com os pacientes e participar de suas atividades internas e externas. Surge daí a revolucionária “terapia do inconsciente”, que provocou a inveja de seus opositores, inclusive do diretor do Centro Psiquiátrico, Nelson (Zécarlos Machado), devido à reintegração de seus pacientes a seu meio social, ao contrário dos tratados pelos transportacionistas.

Única mulher no quadro de psiquiatras do hospital, ela foi vítima de preconceito devido à sua condição feminina, perseguida por ser militante do PCdoB e integrar a ala médica da União Feminina Brasileira (UFB. O que a levou à semiclandestinidade por seis anos (1938/1944), com o companheiro sanitarista Mário Magalhães (Fernando Eiras), após amargar dezoito meses (1936/1937) nos cárceres da Ditadura Vargas (1937/1945).

A arte vira fonte de recuperação

Nem a discriminação e a perseguição a forçaram a mudar sua terapêutica.Com a ajuda do artista plástico Almir (Felipe Rocha) e da estudante de artes Marta (Georgiana Góes), ela monta o Ateliê de Pintura e Modelagem. Devagar seus pacientes saem da caverna do inconsciente e expõem as causas de suas aflições. Fernando deixa aflorar em suas telas antiga paixão, Emygdeo (Claudio Jaborandy) o choque pela traição da amada, e Carlos Pertius (Júlio Abraão) aponta suas carências através das esculturas.

A câmera de Berliner flagra estes mágicos instantes em cores a dar sentido às suas evasões. E eles fazem delas arte simbólica, abstrata, tão pungentes e criativas que encantou o então influente crítico de arte Mário Pedrosa (Charles Friscks), que levou telas e esculturas para exposição em São Paulo. Sendo estas criações o embrião do Museu do Inconsciente (1952) e da Casa de Palmeiras (1956), outros legados de Nise.

São nestas sequências que Berliner eleva sua arte ao encantatório, ao mágico e ao prazer. É Adelina e Fernando despertando para a paixão e seus amigos para o alegre giro pelo parque e a dança na festa junina. Porém a terapia do inconsciente incorporou as práticas psiquiátricas do suíço Carl G. Jung (1897/1965), por quem Nise foi influenciada. E se antecipou às experiências da anti-psiquiatria do italiano Franco Basaglia (1924/1980) e às teorias do filosofo francês Michel Foucault (1926/1984).

Importante é se redescobrir

O mais significativo no filme é o redescobrir a si mesmo. Berliner, com sua estética de cores fortes, às vezes sombria, refaz o percurso de Nelson Pereira dos Santos em “Azyllo Muito Louco” (1970), adaptado do conto “O Alienista”, de Machado de Assis, do francês Philippe De Broca de “Esse Mundo é dos Loucos” (1966), em reverência ao fluir da vida. Mas também evidencia a criatividade de Leon Hirszman (1937/1987) ao resgatar a obra de Nise na trilogia “Imagens do Inconsciente” (1983/1985), neste oportuno e belo tributo.



“Nise – O Coração da Loucura”.
Drama. Brasil. 2015. 108 minutos. Montagem: Pedro Bronz/Leonardo Domingos. Trilha sonora: Jacques Morelembaum. Fotografia: André Horta. Roteiro: Roberto Berliner/ Leonardo Rocha/Patrícia Andrade. Direção: Roberto Berliner. Elenco: Glória Pires, Simone Mazzer, Fabrício Boliveira, Júlio Abraão, Roberta Rodrigues.

(*) Festival do Japão 2015: Melhor Filme, Melhor Atriz (Glória Pires).

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