“O Valor De Um Homem”, trapaças neoliberais

As conflituosas relações trabalho/capital e suas cruéis armadilhas para o operariado são expostas pelo cineasta francês Stéphane Brizé em seu filme.

As árduas, sinuosas e desumanas relações capital-trabalho ditadas pelo neoliberalismo agonizante nunca foram tão explicitas quanto neste “O Valor De Um Homem”. Em lento ritmo, o cineasta francês Stéphane Brizé (Mademoiselle Chambon, 2009) expõe, como num documentário, as etapas percorridas pelo manobrista de guindaste Thierry Taugourdeau (Vincent Lindon) de sua exclusão do setor de produção à absorção pelo setor comercial.

Numa elucidativa sequência, Brizé usa de didatismo para fazer o espectador entender o mecanismo tecnológico de expulsão do operário do mercado de trabalho. Não se trata apenas de ter a vaga, ele exige requisitos mais condizentes. Taugourdeau se vê num incontornável impasse para ser admitido por uma empresa, pois tinha experiência no guindaste modelo 17, quando ela precisava que operasse o tipo 18. E por este estágio impor treinamento, sua experiência se mostrou ultrapassada.

Em apenas uma cena em plano aproximado, pondo, via skype, de um lado Taugourdeau e do outro o invisível selecionador, Brizé mostra quanto a velocidade tecnológica expulsa o trabalhador do mercado de trabalho. O ritmo é tal que ele, sem constante reciclagem, assistência sindical ou do Estado, não consegue acompanhá-lo. Acaba tendo de percorrer a trilha do descenso. Sem opção, ele se vê obrigado a refazer seu orçamento, pôr a pequena casa de praia à venda e sacar dinheiro da poupança.

Conquistas da família ficam sob ameaça

Estes degradantes momentos, permitem a Brizé expor o quanto a família Taugourdeau foi atingida pelos 20 meses de desemprego. Suas conquistas vão se esvaindo, da ameaça de perder a casa da família, cujo financiamento termina em cinco anos, aos recursos para manter os preparativos do filho deficiente Matthieu (Matthieu Schaller) para cursar a universidade, e sem contar as aulas da academia de ginástica. Tudo que foi duramente conquistado pode se esvair, sem retorno.

Ainda assim, Brizé e seu corroteirista Olivier Gorce não restringem as ameaças ao avanço tecnológico. Na elucidativa conversa com sindicalistas, Taugourdeau se acomoda à situação, porém seu companheiro critica as empresas por se aproveitarem da crise econômica para demitir seus operários. “Não vamos mais aceitar motivos econômicos (empresariais)”, garantiu. Se em 2015, o índice de desempregados já era grande, hoje chega a 3,59 milhões, sendo, 10% da força de trabalho, segundo o Ministério do Trabalho francês.

Estes números, creditados às políticas neoliberais do presidente francês François Hollande, do Partido Socialista (PS), resultaram na greve geral, liderada pela Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), contra as reformas trabalhistas em debate no Parlamento francês. Dentre as medidas estão o aumento da carga horária semanal para 60 horas, flexibilização das demissões para atender o patronato, redução do valor das horas-extras de 50% para 10%, ampliando a precarização do trabalho.

Taugourdeau se torna segurança

É diante de semelhante quadro que Brizé aponta a transição feita por Taugourdeau como readaptação ao mercado de trabalho. Antes, ele tinha de se restringir a operar o guindaste, sem outras preocupações. Ao ser obrigado, devido também à idade, a procurar emprego no setor comercial, outras exigências surgiram. Incluindo a aparência, o modo de vestir, falar e se postar diante do outro. E se torna segurança de uma loja de departamento, onde as obrigações são vigiar clientes e companheiros.

Então, Taugourdeau muda seu modo de ver as relações de trabalho. Todos são vítimas da híper-vigilância fascista da empresa, a ponto de levar a funcionária Anselmi (Françoise Anselmi), com 20 anos de casa, ao suicídio e não mencionar a causa aos demais empregados. Ele enxerga, assim, a cruel realidade dos novos tempos a circundá-lo. Tanto que seus limites se exaurem e ele acaba tomando uma inusitada decisão.

Embora busque a simplicidade, Brizé dá ao filme grande complexidade. Opta pelos entrechos em vez de leit motiv (detonador da ação), com narrativa em terceira pessoa, fazendo-a evoluir sem preparo da ação seguinte, como num thriller. Mas torna-a reflexiva numa brilhante sucessão de sequências, que começa na Igreja, onde é rezada a missa por Anselmi, corta para os caixas, fixa nos pacotes de dinheiro e fecha em Taugourdeau a percorrer a loja, pensativo. Bela transição para o desfecho.

CGT dá o rumo

Ao lhe dar tal construção, Brizé traz o espectador para o universo das vítimas do neoliberalismo em derrocada, expondo suas perdas e perspectivas a construir. Longe dos guindastes, Taugourdeau se torna, como outros trabalhadores, numa presa do sistema capitalista. Não à toa as mobilizações da CGT francesa lhes dão o rumo. No Brasil, o risco de precarização do trabalho é o mesmo, devido ao projeto em tramitação no Congresso. A cegueira dos golpistas liderados por Temer, se não forem detidos, criarão outros tantos Taugourdeaus. Resistir é preciso.

O Valor De Um Homem. (La Loi du Marchê/ A Lei do Mercado). Drama. França. 2015. 93 minutos. Montagem: Annie Klatz. Música: Ange Ghinozzi. Fotografia: Eric Durmont. Roteiro: Stéphane Brizé/ Olivier Gorce. Direção: Stéphane Brizé. Elenco: Vincent Lindon, Karine de Mirbeck, Matthieu Schaller.

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