2002: um golpe que não deu certo

O golpe que afastou Dilma da presidência tem sido frequentemente comparado àqueles que depuseram dois outros governantes latino-americanos que defendiam interesses populares e projetos renovadores, Manuel Zelaya, presidente de Honduras (2009) e Fernando Lugo, presidente do Paraguai (2012). A comparação é claramente pertinente no que concerne aos empreiteiros do ato de força.

Acostumadas a chegar ao poder, uma vez derrotadas nas urnas, pela velha e rudimentar técnica de tomar de assalto os centros nervosos do aparelho de Estado com tropas de choque e veículos blindados, as oligarquias da América dita latina passaram a adotar métodos mais contemporâneos de desestabilização de governos progressistas.

Mas embora óbvia, a comparação é parcial. Se quisermos tirar dos fatos os ensinamentos que eles podem oferecer, convém considerar todos os golpes ocorridos na América latina e caribenha desde o início do período aberto pela ascensão dos governos que romperam, em graus diversos, com o neoliberalismo e a submissão ao imperialismo.

O primeiro golpe contra revolucionário desse período ocorreu na Venezuela bolivariana. Vale relembrar a dinâmica dos acontecimentos. Chávez obteve uma grande vitória nas eleições presidenciais de 6 de dezembro de 1998, com mais de 56% dos votos, contra 40% para o candidato que chegou em segundo lugar. Logo que tomou posse, em 2 de fevereiro de 1999, ele propôs um referendum para 25 de abril, no qual foi decidida por uma maioria de 70% dos sufrágios a convocação de uma Assembleia Constituinte, a ser eleita em 25 de julho do mesmo ano. O Polo Patriótico, frente que agrupava os partidários do novo governo, obteve vitória esmagadora: 120 cadeiras num total de 131.

Com lucidez e audácia, Chávez mostrou logo que entendia cumprir à risca seu compromisso com o povo. Utilizando a “lei habilitante”, pela qual a Assembleia Nacional lhe conferiu poderes de legislar por decreto, ele promulgou em outubro de 2001 um conjunto de medidas de reforma econômica e social. As principais permitiam notadamente a expropriação dos latifúndios improdutivos com mais de 5.000 hectares, autorizavam o financiamento dos pequenos camponeses, reforçavam os direitos sociais dos operários agrícolas, aumentavam o montante dos royalties que os trustes petroleiros estrangeiros deveriam pagar ao Estado venezuelano, protegiam as riquezas naturais da exploração predatória e reconstituíam o setor público.

A cúpula da central patronal Fedecâmaras, aliada às camarilhas de políticos habituados a participar do saqueio da renda petroleira, logo perceberam a seriedade da ameaça que pesava sobre seus privilégios. Na linha de frente desse cartel contra revolucionário, os canais privados de televisão e os jornais de grande circulação lançaram uma campanha de intoxicação, carregada de injúrias e de ódio, com o objetivo explícito de derrubar o presidente. A tática: instaurar o caos social e a crise política por meio de uma série de “greves gerais”, na verdade “lock-outs” patronais generosamente financiados por ultra reacionários ricaços « latinos » de Miami. Este objetivo tático foi atingido, empurrando a Venezuela para uma guerra civil larvada, que pôs o golpe de Estado na ordem do dia.

Ponto nevrálgico do confronto era a estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA), responsável por 95% da produção venezuelana, cuja cúpula estava sob o controle de um sindicato mafioso, disposto a qualquer sabotagem para manter seus privilégios. No final de fevereiro de 2002, Chávez decidiu mudar a direção da empresa, colocando em postos chave gestores identificados com o governo. A resposta foi uma série de greves que paralisaram pelo menos metade da produção e culminaram em 11 de abril, quando uma vasta manifestação reacionária, estimulada pelas TVs e pela imprensa a soldo do patronato, foi deliberadamente desviada de seu trajeto inicial pelo comando golpista, que a dirigiu rumo ao palácio presidencial de Miraflores, no momento em que lá ocorria uma contra manifestação de apoio a Chávez.

O desfecho foi sangrento: vinte mortos e uma centena de feridos, na maioria à bala. Os dois lados acusaram-se reciprocamente pelos disparos. Absolutamente certo é somente o fato de que o desvio de rota dos manifestantes reacionários foi obra dos chefes golpistas, já em plena conspiração para derrubar o presidente. Tanto assim que El Nacional, jornal da plutocracia local, havia apontado o rumo em grande manchete na primeira página: "A batalha final será no Miraflores". De fato foi, embora não do modo que o jornal e seus comparsas estavam sugerindo.

Na madrugada de 12 de abril, a mando de oficiais superiores que haviam aderido à subversão, um destacamento militar sequestrou Chávez, conduzindo-o à ilha de La Orchila. O comando golpista anunciou que ele tinha renunciado e que o presidente da Fedecâmaras, Pedro Carmona, assumira a presidência da República. O plutocrata anunciou de imediato a supressão da própria República: dissolveu a Assembleia Nacional bem como as instâncias superiores do poder judiciário e assumiu poderes de exceção, acenando apenas com a possibilidade de convocar eleições gerais no prazo de um ano. Ele tinha avaliado mal, porém a relação de forças no seio do povo.

A despeito da cortina de silêncio imposta pelas redes de televisão e pelos jornais do cartel mediático, envolvidas a fundo na conspiração, uma multidão saída da periferia pobre de Caracas cercou o palácio de Miraflores protestando contra o golpe. Parte considerável do Exército, leal ao presidente legítimo, rumou também para lá. Entrementes, Chávez conseguiu divulgar uma declaração negando ter renunciado. Em poucas horas, o dispositivo golpista desabou e na manhã de 13 de abril, as instituições republicanas foram restabelecidas. As forças populares garantiram, com esta vitória, o prosseguimento do avanço social. Mesmo na dificílima situação atual, a burguesia contra revolucionária não se permitiu o luxo de tentar um novo golpe de Estado. Se chegar à presidência será por meio de eleições. Como na Argentina. Não como no Brasil.

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