“Meu Amigo Hindu”, derradeiro olhar

Em acerto de contas consigo, as mulheres e a família, cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco, recém-falecido, passeia pela fábula e a dor.

Podia ser um filme amargo, entremeado de dor e gemido, no qual o expectador seria pego pelas vísceras ao espreitar a agonia do cineasta judeu Diego Fairman (Willem Dafoe), no leito do Hospital do Câncer de Washington, acometido por doença linfática, quase terminal. Porém, numa sequência deste “Meu Amigo Hindu”, em vez de praguejar contra seu infortúnio, ele, fazendo da sonda microfone, se põe a entoar “Eu estou no paraíso”, estrofe da canção Cheek to Cheek: (Irving Berlin, 1935), numa ode à vida.

Estas desconstruções dramáticas, intercaladas ao longo da narrativa, tal como La Vie En Rose (Edith Piaf/Louiguy, 1945), dentre outras, retiram da narrativa o clima amargo e aflitivo a envolver Diego, desde o início de seu tratamento em São Paulo. E contraditoriamente revelam desconhecida tendência do cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco, recém falecido (07/02/1946/13/07/2016) ao humor, neste que é, além disso, sua autocinebiografia e acerto de contas consigo, a família e suas mulheres.

A história central em si é a luta de Diego para sobreviver ao câncer, tendo a companheira Lívia (Maria Fernanda Cândido) a ampará-lo. Com habilidade, ela ameniza suas rusgas com o irmão Antônio (Guilherme Weber), ajuda-o a suportar as dores infligidas pela doença e seu mal humor, derivado ora da doença, ora de sua natureza. E embora o eixo central seja de extremo realismo, Babenco usa fábula e projeções em duas subtramas para refletir seu oscilante estado psicológico.

Diego vive em clima asfixiante

Além de médicos/as e enfermeira/os a rodeá-lo, ele se vale de ambientes e cores cinzentas, para destitui-los de referências externas. Assim, Diego é mantido numa cama cheio de fios e sonda e ao se deslocar para os exames continua a eles ligado. Quando a dor o exaspera e o clima se torna asfixiante, só lhe resta gritar. Não diferente dos menores deserdados de “Pixote, a lei do mais fraco”(1980) e dos trancafiados de “Carandiru” (2003), sem esperança de evadir-se, por já estarem banidos.

Mesmo sendo a evasão constante recurso em sua dramaturgia, Babenco demonstra ver nele saída para deserdados e trancafiados não sucumbirem ao que os martirizam ou aprisionam. A exemplo do gay Molina (William Hurt), de “O Beijo da Mulher Aranha” (1984), que, preso com um guerrilheiro numa cela, refugia-se em fantasias, Diego brinca com o garoto hindu (Rio Adlakha), também acometido de câncer linfático, contando-lhe histórias para, juntos, amenizarem o que torna suas vidas puro horror.

Não lhe basta, contudo, essa evasão. O temor da morte o atormenta a ponto de à maneira do cruzado sueco (Max von Sydow), de Ingmar Bergmam (1918/12007), em “O Sétimo Selo” (1957), dialogar com mercador da morte (Shelton Mello), indagando-lhe: “Eu queria saber porque eu”. Uma conversa a desandar numa emblemática frase sobre a razão de o morto ter cotação mercantil, sem qualquer explicação plausível: “o mercado criou o mercado“, como se a morte o realimentasse.

Mortos ativam o mercado

A morte deixa então de ser simples relação de tempo e espaço, com suas variantes histórico-sociais para ganhar outros significados. E nada tem de metafisica, é questão puramente materialista, estimulada pelo capital. Suspeita reafirmada no breve encontro de Diego com os milionários judeus, que queriam saber se ele, durante sua experiência com a morte, soube se no céu havia lugar reservado só para judeus. E ele sorri.

Nestas subtramas, Babenco amalgama a relação de Diego com a morte e suas descrenças em dogmas e religião, ao tratar os milionários com ironias. São sutis referências, sem as buscas de Bergman em “O Silêncio” (1963) ou de Michelangelo Antonioni (1092/2007), em (O Eclipse, 1962), que vêm Deus como impossibilidade. Trata-se mais, na visão do polonês Krzysztof Kieslowski (1941/1996) de “A Liberdade é Azul” (1993) e “Decálogo (1988), da dor e do aprisionamento do ser, na sociedade atual.

Diante destas questões, Babenco não deixa de atentar para as ruas, os becos, as sombras, nos encontros com a budista que segue até a casa dela ou a profsex a qual se entrega e depois a refuta. O que reflete suas zonas de sombras, expostas em “Coração Iluminado”(1998) e “O Passado” (2007), como o ser agoniado, lutando para se recompor. Razão inexistente em sua conflituosa relação com Lívia, a qual dispensa sem considerar paixão ou vida a dois, ao que ela responde: “Quero minha vida de volta”.

Em “Meu Amigo Hindu”, ele expõe seus vértices e suas fraquezas, matizados na difícil relação com o irmão Antônio, ao qual deve pedir desculpas. Este instante de ficção/verdade ilumina o homem de origem judaica e suas dualidades, num instante de conclusão terrena. Tanto quanto expôs as fraturas da carcomida e desumana estrutura de poder no país, em “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (1977), cinebiografia do assaltante capixaba dos anos 60/70, cuja frase: “Bandido é bandido, polícia é polícia”, se tornou verdadeira ficção, pois a diferença entre ambos acabou borrada.


Meu Amigo Hindu:
. Brasil. Drama. 2015. 109 minutos. Gustavo Giani. Trilha sonora: Zibigniew Preisner. Fotografia: Mauro Pinheiro. Roteiro/direção: Hector Babenco. Elenco: Willem Dafoe, Maria Fernanda Cândido, Shelton Mello, Guilherme Weber, Rio Adlakha.

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