Uma reflexão sobre o golpe e a experiência histórica da China

O Brasil vive um dos períodos mais conturbados de sua história recente. Velhos fantasmas ameaçam sair de suas covas para perpetrar os horrores que julgávamos jamais ser possível presenciarmos de novo.

Os personagens são novos, mas o roteiro é velho. Capitães do exército utilizando redes sociais para infiltrar e prender militantes de movimentos sociais, prisões sensacionalistas sem provas com convicções, velhas elites manipulando instituições de acordo com seus interesses, entre outros exemplos. O clima é de abatimento e impotência para todos os que acreditam em um Brasil mais justo, autônomo e desenvolvido. Não podemos nos deixar abater, a luta continua. Momentos de crise são capazes de gerar reflexões que nos empurram a vencer barreiras e avançar nosso pensamento.

Nossa reflexão, no entanto, não se trata de elucidar os diversos fatores políticos, sociais e históricos específicos da formação social brasileira que geraram a situação que ora vivemos. Queremos propor o velho debate que sempre surge em tempos de crise. Precisamos pensar sobre qual tipo de país queremos ser e o que precisamos para atingir nosso objetivo. Para tanto, gostaríamos de utilizar como base para esta nossa reflexão a experiência da Revolução Chinesa, em particular um pequena biografia.

Dong Yifu, em artigo escrito para a Foreign Policy, descreve uma situação interessante que muito nos serve para este nosso exercício de reflexão. Um certo dia, durante suas férias de verão, Yifu telefonou para seu avô Yao Guoxiang para saber como ele estava. “Muito mal”, respondeu Yao, “nenhum médico é capaz de curar minha corcunda e minhas dores na lombar”. A dor, segundo Yifu, não era devido a idade avançada de seu avô, na época com 86 anos, mas devido aos espancamentos que sofreu durante a Revolução Cultural. Yao Guoxiang foi diretor na escola secundária número 6 em Fushun, uma cidade mineradora no nordeste da província de Liaoning. Yao foi acusado de tomar o caminho capitalista e sofreu intensas perseguições durante o auge da Revolução Cultural. Todo dia era obrigado a participar de sessões de autocrítica, muitas delas terminando em espancamento. Os abusos físicos continuaram durante sua estadia no campo, por onde passou por uma reeducação pelo trabalho.

Contudo, para surpresa de Dong Yifu, seu avô não guarda rancores desta época. Ao contrário, em seu blog, Yao Guoxiang coloca músicas comunistas e material que muitas vezes exalta Mao Zedong, principal teórico da Revolução Cultural. Yifu narra ter ficado chocado com a atitude conciliatória de seu avô e decidiu aprender mais sobre sua vida.

Dong Yifu aprendeu que a Revolução Cultural foi apenas uma, dentre tantas outras turbulências pela qual sue avô passou. Yao Guoxiang nasceu em 1930, um ano antes da invasão japonesa na Manchúria. A agressão japonesa que se sucedeu em 1937 forçou seu avô a fugir de sua cidade natal Hangzhou. Refugiado de guerra, perdeu familiares. Sua mãe sucumbiu ao tifo e sua irmã mais nova morreu de fatiga. Yao foi obrigado pelas circunstâncias do momento a enterrá-las em covas rasas, sem qualquer identificação.

Em 1945, quando a guerra finalmente terminou, estima-se que 20 milhões de chineses perderam suas vidas durante o período do conflito. A paz, no entanto, ainda estava longe. Os quatro anos de guerra civil entre o Partido Nacionalista e o Partido Comunista que se seguiram empurraram Yao Guoxiang a escolher um lado. Tornou-se comunista por influência de seu irmão mais velho, antigo militante do Partido.

Portanto, a fundação da República Popular da China foi um grande acontecimento histórico, pois representou décadas de paz e estabilidade para tantos chineses que, como Yao Guoxiang, sofreram diversas tragédias durante suas trajetórias.

A China de hoje pouco se assemelha com as trágicas circunstâncias vivenciadas na primeira metade do século XX. Uma época marcada por fome, guerras, doenças e instabilidades, onde a morte e a violência eram parte integrante da rotina e do cotidiano.

Dong Yifu reconhece que seus pais, hoje, fazem parte da crescente classe média chinesa. Esta, com alto poder de compra e que desfruta de todos os avanços da modernidade, tais como boa educação, apartamentos espaçosos, restaurantes e etc. A vida que sua família desfruta na China atual, não passaria na cabeça de seu avô nem durante seus sonhos.

Yao Guoxiang, por sua vez, reconhece os sacrifícios feitos por sua geração. Sente-se afortunado por ter sobrevivendo, onde tantos outros morreram. Yao viu seus filhos crescerem e seus netos desfrutarem de uma China moderna e próspera. O senhor de 86 anos se recusa a fazer-se de vítima por suas experiências negativas. Para sua geração, o comunismo ofereceu uma alternativa viável capaz de colocar fim a situação semicolonial e semifeudal do país. A opção pelo socialismo foi a única capaz de construir o país que todos os chineses aspiravam.

O Partido Comunista da China conseguiu tirar um país semifeudal e semicolonial da miséria e coloca-lo como a segunda maior economia do mundo. Tal feito, no entanto, seria impossível sem o apoio maciço dos chineses da geração de Yao.

A história, em geral, nunca é gentil com as biografias. Chineses como Yao Guoxiang poderiam se ressentir dos tormentos que passaram nas mãos da suposta “ditadura comunista”. Porém, como relata seu neto, Yao não se deixa enganar pela enxurrada de mentiras sobre o período maoísta. Ele acredita que os desvios e excessos foram culpa de indivíduos que se burocratizaram e perverteram o ideal do comunismo para fins próprios. Este velho comunista sabe que o sacrifício de sua geração, em torno do projeto socialista, gera frutos até hoje.

No Brasil, vivemos um retrocesso sem precedentes. O golpe branco executado pelas elites brasileiras não apenas desestabilizou o projeto do Partido dos Trabalhadores, mas também desorganizou o país como um todo. Como o golpe de 1964, precisaremos de um tempo razoável para reorganizar as forças políticas progressistas e empurrar o Brasil para um projeto autônomo e soberano, capaz de fazer avançar um projeto modernizador com caráter popular.

Na China, foi somente através da Revolução de 1949, quando iniciou-se a construção socialista, que o país foi capaz de se modernizar e alterar sua posição subalternar na estrutura internacional. Evidentemente, o percurso até os dias atuais, foi sempre cheio de obstáculos e fortes pressões externas. Houveram diversas tentativas de desestabilizar este projeto.

O Brasil nos últimos anos, ainda que timidamente, rumava no mesmo caminho de se reposicionar no sistema global. Porém sucumbiu as suas contradições internas e pressões externas. Perdemos mais um momento histórico para construir uma nação próspera e justa.

Consolidado o golpe, só nos resta refletir sobre as experiências do povos oprimidos que se levantaram e se sacrificaram para construir um país soberano, socialista, justo e independente.Mas a história tem suas ironias, curiosamente, hoje, o governo golpista e seus apoiadores que partilham da histeria anticomunista que tanto impede o Brasil de avançar, compra produtos e busca investimentos do país onde o projeto comunista triunfou.

A lição que nos fica é dura. Não há um caminho fácil para construir uma nação. Contudo, precisamos nos unir e nos esforçar para organizar o Brasil, colocando o em um caminho justo e soberano. A História já nos demonstrou que países periféricos –retirando os exemplos dos países que tiveram ajuda dos países capitalistas avançados – somente são capazes de romper com o ciclo de exploração através da via socialista.

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