“Lembrança de um amor eterno”, paixão em tempos de internet

Filme do cineasta italiano Giuseppe Tornatore moderniza a relação amorosa na época da internet e discute a duplicação do homem atual.

Ao que parece, a relação amorosa do ser humano poderá se reconfigurar nas cópias dos casais em diferentes planetas ao longo das galáxias. Pelo menos se vingar a teoria do astrofísico Edward Poerum (Jeremy Irons), brotada do roteiro do cineasta italiano Giuseppe Tornatore (Estamos Todos Bem, 1990), neste “Lembrança de um amor eterno”. Através de teia narrativa que se desdobra, utilizando ferramentas da internet, ele conta uma fábula que une paixão, cosmologia e futurismo.

O espectador, porém, nada antevê pela sequência de abertura, quando o sessentão Poerum se despede da jovem Amy Ryan (Olga Kurylenko). Lhe parece mais um caso proibido, dado ao cuidado com que eles se despedem. O mesmo ocorre quando se conectam pelo Skype, para trocar juras de amor. A elucidação se dá só durante as três linhas narrativas, que Tornatore desdobra o filme: a relação deles, o uso da tecnologia e as ações de Ryan como dublê em filmes de ação e em atividades de ilusionismo.

A relação amorosa deles se dá de maneira diversa da usual. Seus contatos são mediados por câmeras e TV, podendo ver o outro no ambiente em que se encontra. E flagrar seus movimentos, apreender seu olhar, identificar a roupa e sentir suas reações. No entanto, à medida que não se encontram se tornam imagens, podendo estar ali ou não. Principalmente Poerum, que se conecta com Ryan pelo velho sistema de entrega de mensagens e ela se adapta sem restrição.

Poerum se torna só uma imagem

Mesmo numa narrativa linear, com poucas variações de cenários, salvo nas sequências de Ryan como dublê e nas finais, Tornatore dota-a de complexidade, a partir do método estruturado por Poerum, para mantê-la a ele conectado. Aos poucos, ela vai se tornando dependente das mensagens via CD que lhe são entregues. E torce para que ele surja na TV, a ponto de não reclamar da presença corporal dele, nem pedir para se encontrarem. Ao reverso, entra numa espiral de horror, ficando ligada à uma imagem móvel e fugidia.

É o criador manipulando a criatura, de modo a não a se afastar dele. Inclusive a orienta na escolha do tema de sua tese, indica-lhe professor-orientador, o que ler e como o expor. Enfim, nada sabe sobre as reais intenções dele. Também o espectador nada apreende desta trama, o que realmente está por trás dela. As sequências se repetem, dando a ideia de assistir à relação amorosa mediada pela internet neste início de século XXI.

Diferente desta hábil trama, o trabalho de Ryan como dublê nada tem de alegórico. Atravessa as chamas em meio ao tiroteio, pedaços de parede a voar, saindo ilesa. O mesmo ocorre na encenação da queda do carro num rio, em meio à perseguição dos vilões, junto com seu parceiro, e nada lhe acontece. Quando muito, quase é sufocada ao ser posta num molde de plástico e gesso, mas reage à brutalidade da exigência. É o contraste do real com o ardil da imagem, que projeta o ilusionismo encenado pelo dublê.

A eternidade nas cópias humanas

Desta forma, Tornatore trata da morte da qual Ryan escapa seguidas vezes como dublê, em paralelo ao esquema montado por Poerum para convencê-la da possível eternidade, sem referências ao criacionismo, tão caro às religiões. Em suas defesas, ele cita a astrofísica e a cosmologia, para reafirmar a existência de cópias de terráqueos em planetas de outras galáxias. O que lhe permitiria se manter vivo, eliminando só uma delas, restando-lhe outras dez. Teria só de acessar o código que reviveria.

Esta teoria, levantada por Tornatore na terceira parte do filme, está centrada no Bóson de Higgs, citado por Poerum. Em artigo de Ana Lucia Santana, publicado no site CinfoEscola (http://www.cinfoescola.com), ela diz tratar-se de “partícula essencial, até hoje fruto de suposição científica, é o elemento de que os cientistas carecem para justificar a composição material do Universo (…). A existência do Bóson foi anunciada antecipadamente com o fim de legitimar o Modelo Padrão, mas ainda não foi possível comprovar empiricamente sua realidade”.

“O Modelo Padrão é a explicação teórica elementar colocada em cena pela física; de acordo com este conjunto de conhecimentos, que estuda a relação entre os corpúsculos subatômicos, o Bóson de Higgs seria o elemento crucial que permitiria ao Homem compreender como se corporifica a massa em meio a toda energia que configura o Cosmos. Daí ele ser denominado pelos estudiosos a “Partícula de Deus”.

Revivência adiante através das cópias

Desde que Stanley Kubrick (1928/1999) discutiu em “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968) a utilização do Supercomputador Hall para viagens interplanetárias, que o cinema não usava a ciência para refletir, de forma materialista, sobre o Universo. Tornatore, ao montar a relação Poerum/Ryan, aventou a possibilidade de eles se reencontrarem a milhões (ou bilhões) de quilômetros da Terra, numa espécie de revivência, não de reencarnação, através de uma de suas cópias, podendo repeti-las à frente. Quem sabe?

“Lembrança de um amor eterno” (Corrispondenza). Drama. Itália. 2015. 116 minutos. Música: Ennio Morricone. Montagem: Massimo Quaglia. Fotografia: Fabio Zamarion. Roteiro/direção: Giuseppe Tornatore. Elenco: Jeremy Irons, Olga Kurilenko, Shauna McDonald, Paulo Calabresi.

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