Indústria 4.0, identidade e consciência de classe dos trabalhadores

Como se sabe, está amplamente questionada hoje pela ofensiva liberal o papel das classes trabalhadoras para qualquer papel transformador da sociedade no rumo do socialismo. A mistificação do fim do papel central do proletariado não esconde a dura realidade da luta de classes promovida pelo capitalismo em termos de superexploração e opressão, precariedade e intermitência nas relações de trabalho, alienação e fragmentação da identidade social.

Infelizmente ela abalou convicções também de setores ex-marxistas na esquerda e deram ensejo ao que genericamente se pode chamar “as novas esquerdas”, aderentes de proposições de novos sujeitos sociais, os “novos atores” do palco da história, como base de um novo bloco social para a alternativa política, desfazendo-se da centralidade das classes essenciais à produção e reprodução do capital. O “fim do trabalho” é um dos pilares do pós-modernismo irracional.

Os trabalhadores têm papel proeminente na luta de classes moderna e são eles que podem, ou não, apresentar-se na liderança de um bloco político-social e intelectual para uma perspectiva socialista. Pretender analisar a sociedade capitalista moderna sem amparar-se no caráter das forças produtivas e relações de produção seria como tentar fazer evoluir a biologia descartando Darwin.

É nesse contexto histórico e material que se firma o papel de classe dos trabalhadores, central para a produção de valor e a reprodução do capital. Compreendê-lo como o sujeito histórico de primeira ordem para o movimento de superação do capitalismo é absolutamente definidor de uma crítica classista e revolucionária do neoliberalismo.

Entretanto, isso não desobriga de atualizar a morfologia mutante das classes trabalhadoras. Hoje se desenvolve a 4ª revolução industrial. Autores como Klaus Schwab, em um trabalho publicado em 2016 intitulado The Fourth Industrial Revolution, a revolução digital é motivada por tecnologias como internet móvel, inteligência artificial, automação, novos materiais, “machine learning” (robôs e computadores que podem se auto programar e chegar a soluções ótimas, partindo de princípios pré-determinados, incorrendo em aprimoramentos nesta capacidade de autoprogramação), além do aperfeiçoamento de sensores tornando-os menores e mais potentes possibilitando, assim, a internet das coisas.

Aprimoramentos no campo genético e na nanotecnologia são, também, apontados como base de tecnologias promovidas por esta revolução em curso. Embora algumas das tecnologias da indústria 4.0 – como softwares, hardwares e a internet – tenham sido desenvolvidas na 3ª revolução industrial, estas sofreram e estão sofrendo um aprimoramento e aperfeiçoamento notável. A internet, por exemplo, com a atual difusão e barateamento do acesso, o incremento da capacidade e velocidade de transferência de dados, assim como a internet móvel, fizeram com que a rede se tornasse onipresente se comparada aos anos 1990.

O desenvolvimento, incorporação e aplicação dessas inovações são realmente disruptivas e têm provocado mudanças sociais e econômicas. Por exemplo, robôs automatizados, futuramente, serão capazes de interagir com outras máquinas (comunicação máquina para máquina: M2M) e com os humanos, tornando-se mais flexíveis e cooperativos; a manufatura aditiva promove a produção de peças, por meio de impressoras 3D, que moldam o produto por meio de adição de matéria-prima sem o uso de moldes físicos. A internet das coisas industrial conectará máquinas, por meio de sensores e dispositivos, a uma rede de computadores, possibilitando a centralização e a automação do controle e da produção. O Big Data e Analytics identificará falhas nos processos da empresa, ajuda a otimizar a qualidade da produção, economiza energia, torna mais eficiente a utilização de recursos na produção e antecipa necessidades das pessoas.

Haverá uma hiper-industrialização 4.0. A crescente perda da participação industrial no PIB das economias maduras do capitalismo até aqui sofrerá mudanças, enquanto em alguns países dependentes aprofunda-se a desindustrialização deformada e precoce, como no Brasil.

Tal desenvolvimento das forças produtivas leva a mudanças técnicas na configuração do trabalho, mas sem afetar a essência da produção ampliada de valor e da exploração mediante a extração de mais-valia; antes pelo contrário, aprofunda-as. Agudiza-se a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção; acentua-se a crise crônica de demanda que constitui uma das essências da presente crise mundial do capitalismo; eleva-se a luta de classes dos capitalistas contra os trabalhadores. Nesse ambiente, a crise capitalista mundial, prolongando-se e não encontrando saídas progressistas mesmo que no âmbito do capitalismo, recrudescerá numa reestruturação produtiva que levará a nova geração de desmonte da materialidade e cultura do mundo do trabalho.

As classes trabalhadoras se apresentam mais extensas, mais diferenciadas, heterogêneas e fragmentadas em sua identidade: hoje, grande parte deles, ao se olhar no espelho, não se reconhece como integrante da classe.

É preciso falar e estudar a condição de um proletariado ampliado, numérica e conceitualmente. Cresce permanentemente o exército industrial de reserva; há crescente substituição de mão de obra pela técnica; eleva-se a precarização do trabalho (terceirização, uberização); há crescente produção de valor e mais-valia na produção imaterial (terciarização da economia); há o trabalho braçal e o exército de quase-agregados da Casa Grande; há o trabalho industrial e o trabalho científico e cultural. Há produção de valor e mais valia não apenas na esfera da produção, como também na distribuição e circulação do capital.

Enfim, o trabalho assalariado produtor de mais-valia estende-se em escala e alcance inimaginados, embora com morfologia distinta do clássico século 20. Um exemplo muito significativo: na capital de São Paulo o maior recolhimento de Imposto sobre Serviços (utilizo-o como índice indireto do valor agregado), provém inusitadamente de uma empresa – não é banco, não é conglomerado, não é indústria… É do Google! Que é o Google? Onde se situa? Quantos são os trabalhadores do Google (posso assegurar que são pouquíssimas centenas na Zona Sul de São Paulo)? Quanto valor geram?

Tudo isso afeta o próprio paradigma da luta política e sindical dos trabalhadores. Conduz a novas exigências para os trabalhadores alcançarem a consciência de classe de seus interesses fundamentais contra a exploração e opressão. Novos segmentos constituirão a “vanguarda” desses trabalhadores, favorecidos pelo contingente mais jovem, o maior nível educacional, cultural, técnico e de acesso à informação. Pode-se falar, sim, em mudanças na composição do mundo do trabalho, mas nada indica que a consciência da exploração e opressão feneçam na vivência dos trabalhadores. Demanda tempo e contemporaneidade no modo de compreender a dialética entre forças produtivas e relações de produção sob o neoliberalismo.

Daí os novos desafios das sociedades modernas, enfatizadas entre outros por Luiz Gonzaga Belluzzo: “como as instituições humanas vão responder às forças sistêmicas transformadoras da vida”? Nisso se inserem outras questões fundamentais, sejam derivadas – padrões novos de urbanização e lócus do conflito social – e alcança também o papel dos Estados nacionais e, paralelamente, a dos partidos políticos.

Não se deve assumir a condição de epígonos, mas descortinar sistematicamente a realidade produtiva e sociológica e empírica para dar conta de atualizar o conceito do proletariado.

Os partidos que se reivindicam como representação dos trabalhadores, em especial os comunistas que se assentam na centralidade da luta de classes dos trabalhadores, trata-se de compreenderem-se precisamente como fator da identidade de classe, vale dizer, desenvolver neles a consciência de pertencimento a uma classe com objetivos autônomos e capaz de constituir um projeto político hegemônico na sociedade, com base nos interesses coletivos e fundamentais da classe e, assim, da maioria da sociedade.

Para isso, precisam abordar o espectro da classe trabalhadora de A a Z e buscar as novas condições para forjar a consciência revolucionária de classe. Isso quer dizer encontrar os modos de fazer a mediação da ciência para alcançar tal consciência de classe “para si”, profundamente modificadas pela base material e sua refração na subjetividade. Só assim, e a partir da vivência direta nas relações sociais dos trabalhadores entre si e na sua luta, se voltará a falar aos corações e mentes da maioria social, com pedagogia e paciência, ouvindo-os para que sejam ouvidos pelos partidos que almejam representa-los politicamente.

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