“Cinema Novo”, refletindo com a câmera

Documentário do brasiliense Erik Rocha reafirma a atualidade dos cineastas do movimento que usou o cinema como instrumento de arte e engajamento.

Ao assistir a este “Cinema Novo”, o espectador vê diante de si não apenas sequências ou cenas de obras-primas do Movimento Cinema Novo, mas múltiplas vertentes de um Brasil que, passados meio século, ainda está por se construir, enquanto nação desenvolvida e democrática. Do Nordeste com seus impasses agrários, do Rio de Janeiro marcado por fraturas e deficiências e de São Paulo com sua inconclusa industrialização. Portanto, um país com suas escancaradas desigualdades, ainda sem solução à vista.

E a forma como o cineasta brasiliense Erik Rocha (1978) organiza sua narrativa neste documentário, o faz entender que suas principais lacunas persistem. A começar pela forma como intercala trechos de filmes com temas variados: exploração no agreste (Vidas Secas. 1963), de Nelson Pereira dos Santos (1928); conflito agrário (Os Fuzis, 1964), de Ruy Guerra (1931); industrialização incipiente (São Paulo S/A,1965), de Luiz Sérgio Person (1936/1976). e revolução terceiro-mundista (Terra em Transe,1967), de Glauber Rocha (1938/1981).

As escolhas destes cineastas, e de outros participantes do movimento, advém de suas opções político-ideológicas, centradas no Terceiro Mundo. Mas sobretudo influenciados pelas estéticas e temas do Neorrealismo dos cineastas Roberto Rossellini (1906/1977), de “Roma, cidade aberta (1945), e Vittorio De Sica (1901/1974), de “Ladrões de Bicicletas (1948), e do cinema do soviético Serguei Eisenstein (1898/1948), teórico da montagem, em “Encouraçado Potemkin (1925).

Câmera na mão e miscigenação

Estas influências estavam sustentadas pelas criações com temáticas nacionais do artista plástico Cândido Portinari (1903/1962)), a tematizar o trabalhador em suas telas (Coletores de Café), do compositor clássico Heitor Villa-Lobos (1887/1959), a imbuir sinfonias de sons populares (Bachianas Brasileiras, 1930/1945) e do cineasta mineiro Humberto Mauro (1897/1983), de “Brasa Dormida, 1928”, considerado por Glauber Rocha o pioneiro da construção da identidade nacional, através das imagens.

Não se tratava só de escolhas temáticas, estéticas e nacionalistas, mas de seguir o ideário de “câmera na mão e ideias na cabeça”, de um cinema não industrial, de escassa estrutura de produção, financiamento e distribuição. O que implicava criatividade, adicionada às ousadias do filme b estadunidense e das escolhas da Nouvelle Vague francesa, por filmar nas ruas e em cenários originais. Destas opções brotaram “Deus e o Diabo da Terra do Sol (1964)” e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha, tratando de cangaço, misticismo e coronelismo.

Contudo, o que pulsa na primeira parte deste documentário é a pujança miscigenada do povo brasileiro, nos mais diversos interpretes. Dentre eles, Antônio Pitanga (1939) e Luíza Maranhão (1940): “Barravento, 1962)”, de Glauber Rocha; Grande Otelo (1915/1993) e Antônio Pitanga: “A Grande Cidade (1966)”, de Cacá Diegues (1940); Eliezer Gomes (1920/1979): “Assalto ao Trem Pagador (1962)”, de Roberto Farias (1932), e Zezé Motta (1944): “Xica da Silva” (1976), de Cacá Diegues.

Cinema nacional se desenraizou

Percebe-se, assim, o quanto o cinema brasileiro se desenraizou. Criou inclusive a máxima de que o público classe média não aceita filme com temática ou protagonista afro, criando a falsa ideia de ojeriza ou puro racismo. Ou falta criatividade e coragem para criar histórias que sejam universais, a partir da realidade afro-brasileira. A continuar assim, sujeita-se a branquear o cinema nacional, caindo na exclusão da maioria da população, justo a que busca se ver na telona.

Mesmo assim, cineastas nordestinos têm procurado refletir sobre a realidade da nação. Os filmes do cineasta pernambucano Kleber Mendonça, de “O Som Ao Redor, 2013” e “Aquarius, 2016”, tematizam a mutação do Nordeste ao fazer os velhos coronéis trocarem fazendas de gado e açúcar por negócios imobiliários, como se viu nestes dois filmes. Já Petrus Cariri expõe, em “O Grão” (2008), a persistência das relações de subsistência e a fantasia da troca do agreste pelo meio urbano.

Com igual tendência, o carioca Fellipe Gamarano Barbosa aguça seu olhar para as escravocratas contradições da sociedade brasileira. Em “Casa-Grande” (2014) centra-o na relação do patrão rentista com suas empregadas, usando-as como séquito para manter seu poder. Tão complexo quanto torna-se o “Que Horas Ela Volta” (2015), da paulistana Anna Muylaert, ao escancarar as ambições da garota emergente, escandalizada com a exploração que a família burguesa impõe à sua mãe.

Cinema não é só diversão

Ao construir seu filme num contínuo, Erik Rocha, filho de Glauber, não se deixa levar pelo documental. Vale-se de ágil montagem para fazer o espectador atentar para a história, deixando clara a proposta de cineastas que continuam a influenciar as novas gerações. Estas, com temáticas e estéticas condizentes com seu momento histórico, podem tender à tragédia ou ao burlesco. Afinal, cinema não é só diversão, pode ser, no limite, uma arte revolucionária.


“Cinema Novo”. Brasil/RJ. Documentário. 2016.90 minutos. Pesquisa: Thiago Brito, Adriana Peixoto, Renato Vallone. Música: Ava Rocha. Argumento: Erik Rocha, Juan Pousada. Montagem: Renato Vallone. Direção: Erik Rocha.

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