“Eu, Daniel Blake”, vítimas do Sistema

Drama do cineasta britânico Ken Loach sintetiza em idoso, mãe solteira e imigrantes os impasses da Inglaterra e as consequências do neoliberalismo.

Com a mesma contundência dos 41 filmes de sua carreira, iniciada em 1964, na televisão, em que trata de temas político-sociais, o cineasta britânico Ken Loach (1936) expõe neste “Eu, Daniel Blake” a tragédia que abate idoso, mãe solteira, crianças e jovens imigrantes na Inglaterra deste início de século XXI. Neste microcosmo, centrado na cidade de Newcastle, nordeste do país, ele sintetiza as cruéis consequências do neoliberalismo e o beco sem saída em que envolve as camadas mais frágeis da sociedade.

A narrativa é centrada no personagem-título, o marceneiro Daniel Blake (Dave Jones), de 59 anos, que acabou de ter um infarto, perdeu a companheira e se vê enredado nas kafkanianas estruturas do sistema de assistência social inglês. Loach, a partir do roteiro de seu frequente parceiro Paul Laverty, deslinda suas relações com os jovens imigrantes às vezes ásperas, como faz com o africano, que joga o lixo fora da lixeira.

É este ser ferido, senhor de seus deveres, que Loach constrói em poucas sequências, com a câmera fixa, ao colocá-lo diante de estruturas supostamente montadas para atendê-lo. E se vê num soporífero ambiente em que tudo é informatizado, a lhe exigir preencher o formulário de seguro desemprego em tempo recorde. Sua reação é de quem se sente deslocado diante do teclado cheio de letras que o transformam em analfabeto digital.

Loach enfrenta o absurdo com humor

Esta eficiente construção dramática de Loach reflete as dubiedades neoliberais ao informatizar as estruturas estatais e privadas sem a correspondente preparação do trabalhador para usá-lo em seu benefício. Blake fica tão atordoado entre as mesas de computadores quanto Joseph K, ao insistir em falar com o entendente e ter seu pedido sempre adiado, em “O Castelo”, de Franz Kafka (1883/1924). Se nestas sequências o absurdo desorienta, o recurso usado por Loach é o humor para o enfrentar.

Como em outras narrativas, seus deserdados personagens estão sempre às voltas com situações sobre as quais não têm controle. Blake é o operário dos formulários manuais, de falar com quem o atende, não de interagir com o computador, sob as ameaças do supervisor. Daí preferir trocar o seguro desemprego pela volta ao trabalho. As barreiras, porém, são tantas que ele acaba num emaranhado de insuperáveis exigências.

Não bastasse seu dilema, Loach inclui a consistente subtrama da mãe solteira Katie Morgan (Hayley Squires) e seus filhos Daisy (Briana Shann) e Dylan (Dylan McKier) para expor os conflitos e as carências da Inglaterra pré-impasse do Brexit, de 24/06/ 2016. Katie é a migrante que trocou Londres pela atraente Newcastle, de 259.536 mil habitantes, em busca de novas perspectivas e perdeu-se em meio à crise do país.

Saída é a união dos deserdados

No encontro de Blake com Morgan, Loach trabalha a solidariedade, sem cair na figura do pai ou da filha de ocasião. Reforça, assim, a visão de que a saída para os deserdados está em sua inexorável união. E Morgan, cujo sonho é voltar a cursar a universidade para cuidar melhor dos filhos, logo se anima. Sobre eles pairam, mesmo que não o identifiquem, o Estado neoliberal, draconiano nos cortes dos direitos dos trabalhadores, mas facilitário aos bilhões para o sistema financeiro e a burguesia.

O custo destas apropriações, feitas em nome do equilíbrio econômico –financeiro, para “não sacrificar as/os trabalhadoras/es”, rendem três fortes sequências, com Loach pondo a câmera para flagrar o sacrifício de Morgan: 1- no jantar em que finge não ter fome para deixar os filhos comer; 2 – no roubo de mercadorias no supermercado e sua prisão; 3) – quando Blake a descobre num prédio suspeito e ela se penitencia.

São sequências construídas por Loach em pequenos espaços, se valendo mais dos movimentos e vozes dos atores, que propriamente de um crescendo dramático. Em “Pão e Rosas, 2.000”, ele põe na estreita cozinha a ambiciosa garota Maya (Pillar Padilha) e sua irmã mais velha, Rosa (Elidia Carilho), num acerto de contas. Maya termina por reconhecer sua dívida.

Imitação trágica dos golpistas

O irritadiço Blake do início, após suas experiências com o sistema social e Morgan, torna-se compreensivo com o africano, vendedor de celulares contrabandeados, e amigável com os demais imigrantes de seu prédio. São mudanças estruturadas por Loach de modo a destacar sua narrativa, em que a fotografia de Robbie Rayan, ao invés de sombria, opressiva, é solar, deixando o clima vir das situações e dos personagens.

No desfecho em contínuo, Loach vale-se de duas impactantes sequências: I – Blake protesta através de faixa instalada em movimentada rua, denunciando que os empecilhos criados para ele e demais segurados foram arquitetados para fazê-los desistir de seus direitos; II – Induzido à tragédia, ele se tranca no banheiro. Mesmo fim podem ter as vítimas da privatização da Previdência Social e do SUS, urdida pelo governo golpista, com o apoio da mídia burguesa. Além do hoje, aniquilam também o futuro.


Eu, Daniel Blake. (I, Daniel Blake), Reino Unido/Irlanda do Norte. Drama. 2016. 110 minutos. Edição: Jonathan Morris. Música: George Fenton. Fotografia: Robbie Ryan. Roteiro: Paul Laverty. Direção: Ken Loach. Elenco: Dave Jones, Hayley Squires, Briana Shana, Dylan Mckier.

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