“O Apartamento”, maus costumes

Cineasta iraniano Asghar Farhadi trata o estupro com equilíbrio ao mostrá-lo em tripla visão como resultado das concepções morais e dos costumes.

Nem todas as motivações de um estupro podem ser apreendidas à luz dos relatos dos fatos. Muitas vezes advêm das construções morais e dos costumes burgueses e religiosos e dos envolvimentos da vítima, do algoz e da interferência de terceiros. Não à toa, o cineasta iraniano Asghar Farhadi (1972) conduz com estremo equilíbrio e delicadeza a narrativa deste “O Apartamento”, a partir das diferentes visões de Ranah (Taraneh Alidoosti), Majid (Mojtaba Pirzadeh) e Emad (Shahab Hosseini).

A complexidade da narrativa a se desdobrar em duas subtramas está em mantê-las aparentemente desconectadas. A do eixo dramático central trata do ocorrido a Ranhah durante o banho, sem que Farhadi o explicite; a do eixo subsidiário gira em torno da peça “A Morte do Caixeiro Viajante” (1949), do dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915/2005), que expõe a relação do personagem título, Willy Loman, com a companheira Linda e o filho Biff, sendo o casal interpretado pelos atores Ranah e Emad.

Mais que os casais comuns, eles convivem no trabalho e em casa, sem mútuas desconfianças. O leitmotiv que os levam a trocar de apartamento decorre do terremoto que destruiu o que moravam e levou-os a outro, de propriedade de Babak (Babak Karimi), produtor da peça, ora encenada por eles. A ex-inquilina muda, mas deixa móveis num quarto. Farhadi trabalha-a como fator desestabilizador do equilíbrio do casal, pois ignoram quem era sua antecessora e Babak não a apressa para esvaziar o cômodo.

Farhadi cria fato desestabilizador

Ao intercalar as sequências da peça e as do apartamento, Farhadi, cuida, indiretamente, da queda do rico judeu Loman, que empobrece, e dos conflitos entre Ranah e Emad, sem mostrar o choque entre eles. Têm-se a impressão que a atenção deles está concentrada na estreia da peça, matizada pelos símbolos, metáforas e contradições judaicas, mas Farhadi introduz outro fator desestabilizador: Emad encontra Ranah em pleno choque ao voltar ao apartamento, escusando-se de revelar-lhe o ocorrido.

Ao invés de explicitar em flashback o ocorrido à atriz, Farhadi estimula o espectador a imaginar o descrito por ela, numa elipse/projeção: tomava banho quando o estranho a atacou, sem lhe permitir qualquer resistência. O horror foi tal que caiu em prostração, perdeu o interesse pela peça e se fechou, não dando pista alguma a Emad. Os próprios colegas não a pressionaram a voltar aos ensaios, com estreia já marcada. O espectador trabalha a partir daí com a ideia do estupro, dada à fragilidade de Ranah.

Não se está aqui diante das ambiguidades sadomasoquistas da burguesa Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), em “Elle”, de Paul Verhoeven, que sente prazer ao ser estuprada, mas da jovem de classe média iraniana que em vez de odiar o homem que o estuprou, busca entender as motivações dele ao atacá-la. Quieta, guardando-as para si, ela chega a outra conclusão, longe do prazer da violência, do dominar e humilhar o forçado objeto de prazer, como ela mesma sentiu e abominou.

Emad só quer se vingar

Fahardi discute assim o modo como a mulher é “educada” numa sociedade patriarcal, conservadora, fundamentalista, que a submete ao domínio total do homem. Mas, ao mesmo tempo, é pressionada a abrir frestas para ela exercer sua liberdade de escolha, educação, trabalho, diversão e o ir e vir. Esta não é a visão de Emad, ao buscar o estuprador ferozmente, pouco atinado ao entendimento de Ranah para o que, na verdade, lhe aconteceu no chuveiro. Quer tão só se vingar, não entender.

Aos dois, Farhadi acrescenta o terceiro vértice deste triângulo forçado: o estuprador, Majid. Idoso, obeso, cardíaco, ele é atraído para a cilada por Emad ao vir ao apartamento. O vilão perfeito e claudicante, diante do perverso vingador. É submetido a todo tipo de humilhação e brutalidade, sendo salvo graças à intervenção de Ranah, no estreito espaço do corredor em que a câmara lhe pega em plano aproximado, para melhor expor seu medo, ao ponto de pedir-lhes perdão, à beira de fatal ataque cardíaco.

Não bastasse, Farhadi contrapõe a esta elaborada sequência de horror, a tentativa da idosa companheira de Majid para livrá-lo do castigo, dizendo: “Eu amo este homem, ele é a minha vida, não fez nada”. Emad cessa sua ira apenas quando sua agora vítima, exausta, é apoiada no patamar da longa escada sob seus olhares de recompensado. Entretanto, para ele bastava. Seu orgulho de macho, de marido traído, fora atendido, já Ranah viu nisto sua cegueira, enquanto algo mais ferino causara sua dor.

Olhar critico sobre a mulher

Ao não mostrar o estupro e as ações da furtiva inquilina, Farhadi deixa ao espectador a estruturação das ações de Majid e das razões do estupro por Ranah. Decorrem daí os frequentes encontros dele no banheiro com a furtiva ex-inquilina. O acaso fez com que Ranah ali estivesse no mesmo horário e em idêntica situação. Deste modo, Farhadi lança um crítico olhar sobre o papel da mulher em seu país através da atriz, embora o ato do idoso não o exima de culpa pelo estupro. Só Emad não entendeu nada disso.

O Apartamento. (Forushande). Drama. Irã/França. 2016. 125 minutos. Montagem: Hajdeh Safijari. Fotografia: Hossein Jafarian. Roteiro/direção: Asghar Farhadi. Elenco: Shahab Osseini, Taraneh Alidoosti, Mojtaba Pirzadeh, Babak Karimi.

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