Leninismo, tática e política

Nos debates sobre a tática durante o III Congresso da Internacional Comunista, Lênin [1] ataca duramente as teses encabeçadas pelo italiano Umberto Terracini. Na medida em que este propunha também substituir “princípios” por “objetivos”, Lênin o identifica com as concepções anarquistas, acrescentando que os objetivos até poderiam convergir comunistas e eles, mas quanto aos princípios “nunca. Muito obrigado, não iremos nisso! ”, exclama ele.

Lênin então – desavisadamente – nos dá uma insuperável lição gnosiológica de categorias fundamentais à compreensão da ciência política dos comunistas.

Segundo escreve, a) os princípios não são o objetivo, nem o programa, nem a tática, nem a teoria; b) a tática e a teoria não são princípios. E exemplifica: princípios do comunismo consiste “em estabelecer a ditadura do proletariado e na aplicação da coação pelo Estado durante o período de transição”. Entretanto, completa a formulação Lênin: “Tais são os princípios do comunismo, mas este não é o seu objetivo”.

Há aqui duas questões centrais.

Em primeiro lugar, trata-se de “idiotices de esquerda” (Lênin, idem, p. 265) confundir tática com princípios, um equívoco reiterado – e às vezes deliberado – que acomete o pensamento esquemático de marxistas (e comunistas). Deliberado porque, não raro, tais posicionamentos vesgos servem a determinados interesses em alimentar debates infindáveis com fulcro de provocar, queira-se ou não, a confusão e o desânimo nas fileiras do movimento revolucionário consequente. Claro, pois a tática transmuta-se em princípios. Provoca-se, ademais, uma falsa frustração vez que se difundem saídas sem becos; ou narrativas alegóricas de novas derrotas anunciadas. Erro crasso!

Ainda porque, nesses casos, clichês aparentemente avançados, que se pretendem à esquerda em novas situações políticas objetivas, e desfavoráveis aos combates dos trabalhadores e suas forças, nada mais faz do que repisar uma tática camuflada em argumentos principistas e moralistas. O pensamento teórico aparece assim medíocre, inteiramente inofensivo aos objetivos que almeja desbravar a tática, mas ao mesmo tempo presunçoso, arrogante. Primarismo político: nada de acumular forças e escavar brechas; joga-se na cristalização de um quadro de forças já estabelecido.
Numa outra esfera dessa mesma matéria, pode-se dizer sem erro que aí se embosca numa visão “ontológica” dos problemas dos meios para concretizar a tática, na medida em que se naturaliza o quadro de contradições novas que insurgem desse ambiente político novo e “carregado”. Quer dizer, a tática supostamente à esquerda guarda a mesma essência da utilizada em situações passadas, ou imediatamente anterior, pois não distingue e não ataca os novos alvos que se revelam em principalidade(s).

Ao contrário, a mobilidade da tática e seus meios indispensáveis são problema da esfera “lógica”, ou seja, deve identificar e apreender claramente as tensões, conflitos, oposições e contrastes infinitos emergidas nas situações que superam bruscamente uma anterior, de antagonismos “represados”.

A teoria política da revolução

Em segundo lugar, porque a teoria, assim com a tática, igualmente não pode ser confundida com princípios?

Com inteiriça razão, o filósofo G. Lukácks, num Posfácio de 1967 acerca da unidade do pensamento do revolucionário russo, [2] retoma uma ideia crucial para o marxista Lênin: a análise concreta da situação concreta não constitui nenhuma oposição “à teoria pura”, mas ao contrário, o ponto culminante da autêntica teoria, o ponto em que a teoria “é verdadeiramente realizada”, transformando-se por esta razão “em práxis”. Luckács responde desse modo à questão, demonstrando que é na análise concreta da situação concreta que reside o vértice da prática (política) resultante da teoria leninista.

Noutro ângulo, é exemplar a observação de L. Gruppi acerca da excepcional virada estratégica “tão rapidamente realizada por Lênin”, imediatamente após a Revolução de Fevereiro. Ela – diz bem o pensador italiano – foi motivada não por um raciocínio sobre o desenvolvimento da economia, que não sofrera desde 1905 alteração substancial, apesar da expansão do capitalismo, e sim por avaliação sobre a situação da correlação de forças políticas. [3] Inverte-se a relação hierárquica entre estratégia e tática, na medida em que subordina a estratégia anterior à nova etapa da luta política na revolução realizada.

Nesse curso – do processo revolucionário russo -, o pensamento sofisticado de Lênin é minunciosamente analisado por Lucien Sève [4], destacado filósofo francês e ex-dirigente do PCF. Ao demolir os argumentos da anticomunista Hélène Carrère (Lénine, Fayard, 1998), Sève demonstra, para decepção de muitos, que a possibilidade de uma “revolução pacífica tem um lugar central na visão estratégica de Lênin pelo menos desde Abril de 1917”. Sim: é verdadeiro que, no “Projeto de resolução sobra a guerra”, Lênin Propõe que a Conferência de Petrogrado (27 de Abril a 5 de Maio) reconheça que:

“(…) em nenhum lugar do mundo se pode efetuar tão fácil e tão pacificamente a passagem de todo o poder de Estado à verdadeira maioria do povo, quer dizer, dos operários e dos camponeses pobres”. [5] Lênin se referia a experiência “única” da conformação dos Sovietes como força e expressão do poder da ditadura democrática revolucionária dos operários, soldados e camponeses, na Rússia, ao lado do governo da burguesia.

Sim, para Lênin, antes de julho era possível a transferência pacífica do poder para os sovietes, “Mas já não é esse o caso, o período pacífico da revolução terminou. Chegou o período da ruptura e da explosão” (cf. Séve, idem, p.7).

Lênin e nós

Os comunistas do PCdoB persistem, agora mesmo, no terreno do desenvolvimento de seu pensamento teórico-político, firmemente entusiasmados com o imenso tesouro que nos legou o primeiro estadista do Socialismo Vladimir Lênin e sua obra imortal. Suas lições de tática e de política continuam a nos iluminar, notadamente nos momentos mais adversos das lutas de classes do solo brasileiro. Aprendemos que a retórica esquerdista, imprestável do ponto de vista prático, merece dele acusação de repetição disparata de fórmulas aprendidas de cor, em vez do estudo as características específicas da nova e viva realidade. Realidade de violenta inflexão no sistema de forças anteriormente hegemônico, nos dias que correm.

Conjuntura adversa – sempre em movimento – que não nos dá o direito de confundir grosseiramente tática e teoria com princípios. E isso professa oposição aos raciocínios estereotipados dos “velhos bolcheviques”, sublinha igualmente que não pode ser coisa que aparenta juvenilidade. Ou como exatamente fraseou o grande Maestro do Brasil Tom Jobim: “O Brasil não é coisa para principiantes”.
Nessas situações de derrotas – ou de acordo forçado e “humilhante”, usou a palavra Lênin – é mais ainda necessário dar-lhe ouvidos escancarados: “É do nosso interesse fazer todo o possível, aproveitar até a menor possibilidade, para adiar a batalha decisiva até o momento (ou até ‘depois do momento’)”, afirmou Lênin, [6] condenando os “comunistas de esquerda” que acusam de “defensismo” a política da paz de Brest-Litovsky, mesmo depois de realizada. Óbvio que não se trata aqui de analogias toscas, mas de ressaltar as condicionalidades que impõem a objetivação das vicissitudes nas batalhas dos autênticos comunistas.

Outrossim, sejamos diretos: gigantescos são os nossos desafios. Como pertinentemente nos lembra W. Sorrentino, [7] disse um dirigente do PC (M) da Índia que, podemos pensar erguendo-nos sobre os ombros de Lênin para enxergar mais longe e vastamente, mas não pensar com a cabeça dele pois ela cessou de trabalhar e estava voltada para seu tempo. Temos que fazê-lo com nossas próprias capacidades e experiências, aproveitando o proveitoso legado que ele nos deixou, sendo contemporâneos dele.

NOTAS
[1] Ver: “III Congresso da Internacional Comunista. Discurso em defesa da tática da Internacional Comunista- 1 de julho”, em: V.I. Lenine, Obras Escolhidas, vol 5, Avante!, Lisboa, 1986, pp.265-267.
[2] Ver: “Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento”, György Luckács. Posfácio, Boitempo, 2012, p. 106
[3] Ver: “O pensamento de Lênin”, L. Gruppi, Graal, 1979, p.157.
[4] Ver: “Regresso crítico a Lénine ou antileninismo primário? ”, de L. Sève, in: Vértice, Lisboa, Abril-Maio de 2000, pp. 5-21.
[5] Em: “Conferencia del POSDR(b) da la ciudad de Petrogrado”, V. Lenin, Obras Completas, Tomo XXV, Akal, p. 93.
[6] Ver: “Infantilismo de ‘esquerda’ e a mentalidade pequeno-burguesa”, V. Lênin, em? “Estado, ditadura do proletariado e poder soviético”, Bertlli, A. (org.), Belo Horizonte, Oficina de livros, 1988, p. 244.
[7] Ver: “Partido Comunista: que Partido, para que?”, W. Sorrentino, em: “Visões de Lênin”, São Paulo, Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2017, no prelo.

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