O jornalismo de raiz e o Nutella (I)

Minha jovem amiga e camarada Laís Gouveia, jornalista sensível e competente que atua neste Vermelho, publicou dias desses, em sua linha do tempo no Facebook, um quadro comparando um jornalismo chamado de raiz com outro, chamado de Nutella.

O jornalista de raiz seria uma espécie em franca extinção, idealista pobretão e leitor voraz que vivia nas ruas atrás da notícia e alimentava o sonho de um mundo melhor. Já o de Nutella, sequioso por ser notícia no Instagram, é pós-moderno e pós-graduado em tudo, fala inglês, só lê o que confirma sua opinião e vai ao Google para saber o que significa a palavra utopia.

A postagem de Laís logo me remeteu aos meus velhos tempos de “jornalista de raiz”. E essa memória me conduziu a dois episódios (entre numerosos outros) que passo a relatar nesta edição inaugural da coluna em 2017 e na próxima.

Dezembro de 1976. Fronteira seca do Brasil com a Argentina, onde se juntam três cidades: Barracão (PR), Dionísio Cerqueira (SC) e Bernardo de Irigoyen, província argentina de Missiones. Jovem repórter da sucursal paranaense de O Estado de S. Paulo, fui enviado à região para cobrir a prisão de camponeses brasileiros na localidade de San Pedro, há uns 60 quilômetros de Irigoyen.

Na época eu tinha um Maverick oito cilindros, máquina incrível que voava sobre o asfalto, entornando, em compensação, um litro de gasolina a cada seis quilômetros rodados. Mas o jornal pagava a quilometragem. Deixei Curitiba às 11 da manhã, logo após receber a missão. Trezentos e vinte quilômetros depois, em Curitibanos (SC), dobrei à esquerda e segui mais 380 para São Miguel do Oeste. Dali, já bordejando a fronteira, avancei para São José do Cedro, última cidade até chegar ao meu destino, Dionísio Cerqueira/Barracão (os de fora nunca sabem exatamente em que cidade estão).

A estradinha poeirenta e estreita serpenteava pela serra e eu já cabeceava após onze horas de viagem (só havia parado quinze ou vinte minutos para comer alguma coisa no final da tarde). Por vezes imagens de árvores surgiam na minha frente ou a estrada parecia ir para um lado, quando ia para outro, outras vezes eu despertava com o ruído das rodas do carro correndo pela exígua faixa do acostamento. Mas seguia pelos 65 quilômetros restantes, pois deveria estar logo cedo em San Pedro, apurar os fatos e, de volta, e mandar uma primeira matéria no final do dia.

De uma dessas dormidas acordei com o estrondo da roda dianteira direita saindo da pista e logo o carro despencou pela ribanceira, tombou sabe-se lá quantas vezes. A sorte é que o terreno era fofo, uma plantação de milho. Ao cessar da capotagem, o carro estava em posição normal e eu, no banco do passageiro, sentado sobre os meus sapatos. Sem ferimentos e sob o negrume da noite alta, saí do carro com cuidado (estaria eu na beira de um precipício?), resgatei minha pequena bagagem e – importante, decisivo – minha Olivetti portável.

Subi lentamente para a estrada e ali fiquei até surgir, não me recordo quanto tempo depois, um ônibus. Cheguei de madrugada em Dionísio Cerqueira, procurei um hotel e, poucas horas depois, de manhãzinha, já havia fretado um taxi e seguia para San Pedro. Mas o que significavam poucas horas de sono para os meus 26 anos e para minha gana de repórter? Nada. E o que significava um carro tombado na serra para um jornalista ávido pela apuração da notícia, pela redação e envio da matéria? Nada.

Há quase nove meses a Argentina vivia sob o chamado Processo de Reorganização Nacional, eufemismo para a truculenta ditadura sob o comando do tenebroso general Jorge Videla. O caminho para San Pedro, não mais que 60 quilômetros, estava coalhado de tropas, ora em barreiras, ora em movimento. E eu ali, já com três prisões nas costas por me opor a ditadura brasileira, pisando em ovos com a milicada argentina. Na cidadezinha, parecia haver mais soldados que habitantes. Soldados, jipes, caminhões e armas do exército. E um povo quieto e de olhos estalados. Não pude falar com os camponeses e hoje não me recordo o que exatamente havia feito. O fato é que estavam presos, quinze ou vinte deles. De todo modo, apurei a situação com cuidado, mas com amplitude e precisão, conversei com os militares e com o povo. De volta a Dionísio Cerqueira, já final de tarde, e sem tempo para redigir a matéria, fui a um orelhão e a transmiti ao jornal ao mesmo tempo em que a produzia mentalmente.

Na mesma noite, pedi ao Fioravante – espantoso, quarenta anos e ainda lembro do motorista do Corcel amarelinho que me serviu – que na manhã seguinte fosse à São José do Cedro e acertasse com a Prefeitura o reboque do Maverick abandonado no meio do milharal. E também que me indicasse outro motorista para levar de novo a San Pedro. E foi isso que aconteceu.

Ainda cobri a chegada dos camponeses – expulsos da Argentina – em Dionísio Cerqueira. Na entrevista coletiva com o delegado local da Policia Federal, uma surpresa: tratava-se do inspetor Arcoverde, que presidira um inquérito, quatro anos antes, em que eu e vários companheiros fomos presos e processados como incursos na Lei de Segurança Nacional. Comportamo-nos – o inspetor e eu – como se nada houvesse entre nós até que, ao final, ele me puxou para um canto e, cortesmente, me perguntou: “Mas o Zequinha era ou não da AP?”. Ora, sempre neguei isso, mesmo enjaulado e sob terríveis ameaças na sede da PF em Curitiba. E respondi, também cortesmente: “Essa resposta eu já lhe dei há cinco anos, doutor Arcoverde”. E ficou por isso.

Concluída a cobertura, com matérias que a mim e ao jornal satisfizeram, peguei meu carro na Prefeitura do Cedro. A bateria havia sido roubada e os vidros, quebrados. O teto estava tão amassado que eu mal coube dentro. E voltei para Curitiba, meio encolhido. O belo Maverick, ainda que tão machucado, voava sobre o asfalto.

Talvez passagens como essa confirmem a generosa opinião da minha amiga Laís Gouveia – e a serena percepção de minha própria consciência – de que eu sou (ou fui, melhor dizendo) “a personificação do jornalismo de raiz”.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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