Na mesa, a Venezuela. Mas, não só!

Há pouco mais de um mês, o presidente norte-americano disse que os Estados Unidos não descartam uma intervenção militar na Venezuela.

Alguns consideraram uma blague, jogo para a plateia interna, acompanhada por um imediato desmentido do Secretário de Defesa. Contudo, nada que um presidente dos Estados Unidos diga pode ser desconsiderado. Ainda que a ameaça à Venezuela não se traduza em planos efetivos para uma intervenção militar clássica, ela serve de mote para a condução de uma política ainda mais intervencionista na América do Sul, aproveitando-se de um cenário político no qual governos conservadores apresentam-se como linha de frente da defesa dos interesses norte-americanos.
Oficialmente, os governos sul-americanos manifestaram-se por uma solução pacífica do conflito que hoje tem a Venezuela como palco (somente palco, pois os atores não são exclusivamente venezuelanos). Não condenaram Trump, apenas emitiram uma opinião diferente, algo muito pouco contundente para uma ameaça daquela natureza.

 
Ilustração: Tainan Rocha

Agora, no último dia 18, paralelamente à Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente norte-americano ofereceu um jantar a mandatários e ministros de países latino-americanos. Inicialmente, foi anunciado que compareceriam Michel Temer, Juan Manuel Santos (Colômbia) e Pedro Pablo Kucinski (Peru). Todos países que participarão de exercícios militares conjuntos em novembro deste ano. Ao final, Panamá e Argentina também foram incluídos e Kucinski só não jantou na Trump Tower porque as vitórias da oposição em seu país o impediram de viajar a Nova York.

No cardápio, a Venezuela, como Trump reiterou em discurso na ONU. Mas não só! É ilusório imaginar que a ameaça norte-americana se volta exclusivamente para o país de Hugo Chávez. Em um contexto de pacificação na Colômbia, com as FARC adentrando a vida política institucional do país, os EUA precisam de novos pretextos para manter e ampliar sua presença militar na imensamente rica floresta amazônica. Um continuará a ser o narcotráfico, bem como outros ilícitos internacionais. O outro é a instabilidade política venezuelana.

Os EUA buscam ampliar sua presença militar na América do Sul há anos. O Plano Colômbia, instituído em 2002, permitiu que atuassem direta e indiretamente no conflito civil colombiano, na região amazônica. A base militar instalada em Mariscal, no Paraguai, mantém os Estados Unidos próximos à tríplice fronteira e a Quarta Frota de sua Marinha, patrulhando o Atlântico Sul, permite ataques a qualquer ponto do subcontinente. Essa frota, aliás, estava desativada desde 1950, retornando apenas em 2008, mesmo ano da fundação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano (o CDS). O CDS, uma iniciativa do governo brasileiro, rompeu com a concepção de segurança hemisférica, deslocando de Washington para as capitais do sul as decisões quanto à defesa da região. Além disso, trouxe como ponto central a proteção dos recursos naturais da América do Sul e a soberania de sul-americanos sobre eles. Naturalmente, incomodou os Estados Unidos.

O papel do governo brasileiro é fundamental para se compreender a busca por autonomia que marcou a política externa regional nos primeiros anos do século. Durante o governo Lula, o país procurou protagonismo também na esfera da defesa. O já mencionado CDS, a elaboração da Política e da Estratégia Nacional de Defesa e a busca da ampliação do leque de parceiros no fornecimento de equipamentos militares (acordos com França e Suécia) foram pontos importantes. Contudo, o golpe no Brasil levou ao poder aliados dos Estados Unidos e busca a todo o custo atender às demandas represadas no período anterior.

Desde o princípio, o governo golpista brasileiro manifestou seu propósito de alinhar-se às diretrizes ditadas por Washington. A crítica de José Serra, primeiro chanceler do governo Temer, ao modelo de integração consagrado pelo ciclo progressista já anunciava esse caminho. A viagem de Aloysio Nunes Ferreira a Washington um dia depois da votação do impedimento da presidenta Dilma na Câmara dos Deputados foi outro indicativo. Enquanto presidiu a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, Aloysio defendeu enfaticamente uma aproximação do Brasil com os Estados Unidos. Não à toa, foi ele o escolhido para suceder Serra no Itamaraty.
Em março deste ano foi condecorado em Brasília o general Clarence Chinn, comandante do Exército Sul dos Estados Unidos, responsável pelas operações em toda a América Latina. No mesmo mês, foi assinado o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento (Master Information Exchange Agreement – MIEA) entre Brasil e Estados Unidos, que consagra o alinhamento do governo Temer aos EUA, fazendo com que o Brasil esvazie o sentido de uma estratégia própria em política de defesa. O discurso de Temer na Assembleia Geral das Nações Unidas, sem qualquer menção às instituições da integração, também reforçou essa nova velha linha.

No mesmo mês de março – fomos informados desde Washington – o governo brasileiro convidou os Estados Unidos para participarem com efetivos de apoio na AmazonLog17, o exercício militar que reunirá em Tabatinga-AM, no mês de novembro deste ano, forças de Brasil, Peru e Colômbia. Embora o Centro de Comunicação Social do Exército informe que a participação dos EUA se dará apenas com efetivos de logística, chama a atenção o convite para acompanhar exercício militares na absolutamente estratégica região amazônica. Bem como chama atenção a coincidência desse exercício com as declarações intervencionista de Trump.

A defesa da soberania sobre a floresta foi, desde a reconstitucionalização do país, pedra angular da política de defesa e da doutrina militar. Por isso, o convite aos EUA produziu reações entre oficiais brasileiros, evidenciando o dissenso ante a orientação do governo Temer. Um e-mail, repercutido pelo defesa.net (espécie de voz extra-oficial dos militares), circulou internamente com tons duros: “convidar as forças armadas dos EUA para fazer exercícios conjuntos com nossas Forças Armadas, na Amazônia, é como crime de lesa-pátria. Ensinar ao inimigo como nos combater na selva Amazônica é alta traição” .

A declaração de Trump não foi um raio em céu azul.

Ela veio em um contexto de realinhamento do Brasil aos objetivos estratégicos dos EUA, com enormes riscos para a soberania dos estados sul-americanos. Muito se escreveu sobre o desprestígio do governo Temer quando, logo após a declaração de Trump, o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, ignorou o Brasil em seu giro pela América Latina. Pence não passou por aqui porque o governo brasileiro já estava assegurado e servindo de ponta de lança para arregimentar mais compromissos dos demais governos da região.

O caminho para aquele jantar na Trump Tower envolveu nossa América em um novo alinhamento político e militar. O isolamento da Venezuela, pretexto público para as ações em curso – goste-se ou não de Maduro – é uma permissão tácita para a captura geopolítica de todo o continente. A busca por uma solução pacífica e regional para a Venezuela e o rechaço a qualquer intervenção externa não é apenas a defesa da soberania de um país vizinho (que por si só já bastaria como justificativa). É, principalmente, o caminho da resistência para evitar uma ameaça à soberania de todos os estados da região.

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