Aguador de frangos

Por precisão, por pura necessidade, a dar conta da fome crescente de uma prole entre a infância e a adolescência, cruzo as estradas que cortam os sertões do Ceará, em ofício cansativo mas no mais das vezes prazeroso.

Nesses meses do “bro” o sertão desafia a ciência e se aproxima perigosamente do sol. Por mais que garantam o contrário, há em todos nós que aqui sobrevivemos a certeza de que, no “pingo da meidia”, a distância que separa o sol das nossas cabeças não deve passar de algumas poucas dezenas de metros. Outubro, paisagem feita quase só de cinza, uma ou outra explosão de ouro do pau d’arco solitário no meio da caatinga, as estradas são artérias negras, pulsando no coração da terra quente, de uma quentura que nem dá para descrever.

Na beira da estrada, a placa escrita com apressada grafia sinaliza, indicando para logo adiante, um “aguador de frangos”. A estrada sonolenta à frente, o cansaço que faz a gente cabecear, a imaginação voa logo, a imaginar o que seja aquela nova, estranha, exótica profissão. O que será que faz um aguador de frangos? Confesso que, para mim, o termo era uma grande novidade.
Um amigo dileto, mas perturbado talvez pelo calor, pôs-se logo a imaginar um código secreto, um disfarce a ocultar atividade tão antiga quanto o próprio homem. Ouriçado, ao ver três ou quatro caminhões parados logo adiante, já imaginou-se ganhador de aposta inexistente, que nem havíamos feito.

− Eu não disse? Eu não disse?

A curiosidade, que em mim arde por vezes mais do que esse sol que ronda por perto, fez-me parar. Na parede branca da casinha isolada no meio do nada, apenas a caatinga ao redor, duas inscrições, uma a tentar explicar melhor a outra:

“Agoa-se frango.”
“Aguador de frango.”

Olhando os caminhões, antes mesmo de ver o tal “aguador” em ação, é que notei se tratar de carga viva. Transportavam frangos, aqueles que chamamos de frango de granja. São levados vivos dos criadouros, as granjas, até às cidades e povoados ao longo da sua rota, por vezes contada em centena de léguas.

O sertanejo da cidade não acredita muito que aquele frango congelado, comprado na prateleira do supermercado, ensacado e etiquetado, marombado feito um desses bombadões de academia, o sertanejo não acredita muito que aquilo seja mesmo um frango. Há de ser bicho qualquer, com que tentam nos ludibriar. Na falta de uma boa galinha de capoeira, ele acredita mesmo é naquele frango comprado na feira, penas branquinhas, amarrado ao pé da banca na calçada do mercado, morto ali mesmo na cara do freguês, depenado e tratado pela dona Maria da banca com maestria ímpar.

Por isso os frangos são levados vivos, para ser abatidos no local do consumo. No calor infernal, transportados naqueles caixotes verdes em cima dos caminhões, os pobres frangos sofrem um bocado, e a taxa de mortalidade é alta nessa época do ano, no calor de rachar do sertão.
Pois deu-se que o sujeito, a vida meio apertada, sabedor do sofrimento que acometia os candidatos à canja, sem perspectiva alguma de chegar a galo de terreiro, criou um jeito de amenizar o calor dos galináceos e de quebra ganhar uns trocados. O sol do sertão, cozinhando os miolos dentro da panelinha que chamamos de cabeça, criou nova profissão: aguador de frango. A sabedoria e a inventividade do povo afloram na necessidade, mãe de todas as invenções.

A profissão foi inventada e prolifera; já vi por aí, nesses ermos, mais de um aguador de frango. Profissão nova, ainda não regulamentada, sem direitos e sem sindicato. Mas que, certamente, a depender do mau humor desse sol, há de se multiplicar rapidamente.

Fiz o relato tão somente para esclarecer de vez do que trata o tal “aguador de frangos”, findando alguma especulação e receoso de que, feito aquele amigo dileto, os meninos do “emebêele” compreendam errado e ataquem o pobre do aguador, acusando-o de atentado à moral e aos bons costumes.

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