Um monumento suspenso no ar: batalhas pela memória na América

Um monumento pairou suspenso sobre Buenos Aires e sobre a memória e consciência da América. O episódio, ocorrido há um mês, se originou de uma batalha um pouco mais antiga: em 2015, por iniciativa do governo central, então presidido por Cristina Kirchner, foi retirada uma escultura em homenagem a Cristóvão Colombo da praça localizada logo atrás da Casa Rosada.

Era um local nobre, que abrigava desde 1921 a lembrança, em mármore de carrara, do navegante florentino. No lugar de Colombo, foi instalada uma escultura celebrando Juana Azurduy, heroína das guerras de independência do antigo Vice Reinado do Rio da Prata (cuja jurisdição alcançava os atuais Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia).

Esse é o tipo de batalha que não leva em conta os personagens históricos em si, mas aquilo que eles passaram a representar para as gerações posteriores. Colombo pode celebrar a memória da conquista da América, com o genocídio e escravização dos povos originários, e a opção pelo enaltecimento de pretensas raízes europeias. Juana Azurduy, a guerreira patriota comandante de um exército de indígenas, tirava das sombras tanto o papel das mulheres nas lutas pela independência como o dos povos andinos originários. Não era apenas uma troca de estátuas, mas uma opção política sobre o que seria reverenciado. Para completar, o novo monumento foi construído dentro do Espaço para a Memória e Promoção dos Direitos Humanos, complexo de edifícios que abrigou, durante a ditadura, o principal centro de tortura do país. Ressignificação de espaços, ressignificação da história.

Debaixo de protestos da direita e, inclusive, de uma ação judicial, Juana Azurduy passou a ocupar aquele local simbólico. Contudo, há cerca de um mês, por iniciativa do governo de Buenos Aires (e já sob o impacto da presidência de Macri), o monumento foi retirado pelos guindastes que o suspenderam sob os céus da capital argentina e levado a algumas centenas de metros, na Praça do Correio. A justificativa apresentada foi a construção de um novo parque. Ali, onde a memória dos excluídos conseguiu uma singular vitória, será construído um heliporto.

Buenos Aires não é um caso excepcional. Nas ruas e praças das cidades é travada uma batalha pela memória. A escolha dos nomes das vias, dos monumentos e estátuas, dos locais a serem reverenciados nunca é neutra. A eleição do discurso sobre o passado que se pretende reverenciar é um ato de poder. Assim como a história de reinos antigos é apresentada como uma sucessão de dinastias, governantes e imperadores, as ruas de São Paulo, por exemplo, oferecem um desfile de antigos escravagistas e senhores de terras. As evocações do passado, nas suas diversas formas, são utilizadas para reiterar, legitimar e perpetuar a ordem dominante. Há um forte apelo conservador à autoridade do passado, acompanhado também por uma orientada seleção do que não será lembrado e reverenciado. Por outro lado, o campo popular constrói sua própria evocação, seus marcos históricos, que sobrevivem a despeito do combate travado em condições desiguais.

Os latifundiários do México temiam tanto Pancho Villa e a reforma agrária promovida no caminho da sua legendária Divisão do Norte que, após ser assassinado, teve seu nome proibido nos livros escolares, ruas ou quaisquer homenagens que o relembrassem. Por outro

lado, os norte-americanos construíram a imagem de um Villa bandoleiro para macular o apelo simbólico do revolucionário que atacou território dos EUA e venceu. Foram necessárias décadas para que seu nome fosse escrito no monumento à Revolução, no centro da Cidade do México. Não obstante, ele permanecia cada vez mais vivo nas histórias, nas fantasias, nas canções do povo. Nem sempre, a memória das lutas populares é domesticável.

Na ocasião dos 500 anos da chegada às costas do Brasil da expedição comandada por Pedro Álvares Cabral, o governo FHC espalhou por todo o país enormes relógios comemorativos. A cerimônia principal daquele ano de “celebrações” contou inclusive – coerentemente – com uma pesada repressão policial contra indígenas que se manifestavam. Qual memória foi exaltada pelas festas do “Brasil 500 anos”? E qual foi ocultada? No outro oposto, há uma placa na Praça Maior de Cusco, Peru, antiga capital dos incas com a seguinte inscrição: “aos 500 anos, glória e honra às vítimas anônimas da invasão e aos heróis da resistência andina”, seguido por um texto em letras maiores: “E não poderão nos matar”. As duas opções rememoram o mesmo episódio histórico em sentidos opostos.

Em outros casos, a disputa se dá em torno da mesma figura simbólica. Isso é o que ocorreu com Simón Bolívar, na Venezuela. Desde o século XIX, o Estado e as elites que o controlaram apresentaram um Bolívar defensor da ordem e legitimador do poder: um herói de repartição pública, na expressão de Octavio Paz. Contudo, essa versão oficial conviveu com outra, popular, que via em Bolívar a memória de sua própria tradição de lutas e inconformismo. O mesmo personagem era disputado pelos que desejavam manter a ordem e pelos que lutavam pela sua transformação. Hugo Chávez, quando se apresentou como “bolivariano”, bebeu na fonte viva do povo e não no bronze frio do estado. Na Venezuela, como em poucos casos, a memória popular venceu ao fazer prevalecer suas próprias referências simbólicas, apropriando-se de um passado que lhe fora alienado.

Neste mês, o El Pais Brasil publicou uma pesquisa sobre a nomenclatura de ruas no Brasil e constatou que, ao menos nas placas, a ditadura ainda persistia1. Chegaram aos números de quase 3 mil km homenageando ditadores e torturadores e apenas 160 km dedicados às suas vítimas. As ruas trazem nomes até de pessoas que a Comissão Nacional da Verdade relacionou entre os responsáveis por torturas e mortes. Essa informação é indicativa de uma transição para a ordem democrática sem a devida depuração do que ocorreu. É possível que, para a maioria dos habitantes da cidade, esses nomes de rua signifiquem pouco ou nada, como nos versos do poeta colombiano José Manuel Arango: “Por ruas que tem nomes de batalhas / Vou solitário e vazio”. Para a maioria dos habitantes de São Paulo, o “Minhocão” continuou sendo “Minhocão” mesmo depois que o nome de “Elevado Costa Silva” foi alterado para “Presidente João Goulart”. Mesmo assim, o fato de o povo não reconhecer a si mesmo nos espaços públicos demonstra que esse vazio identitário deve ser suprido.

Em Buenos Aires, Colombo não foi trazido de volta, como queriam os mais conservadores. Na verdade, ele sequer foi remontado: jaz deitado aos pedaços, próximo ao Aeroparque, na Costanera Norte. Juana teve destino mais nobre, sendo alocada em frente ao Centro Cultural Kirchner. Mesmo que o espaço dedicado a ela seja mesmo convertido em um heliporto, tanto o debate levantado como a reação contrária às luzes lançadas sobre uma história encoberta

deixaram evidente que a memória é um campo de batalha que não deve ser negligenciado. Afinal, ainda que tenham alterado a localização de um monumento, os espaços da memória não poderão mais ignorar Juana Azurduy, a líder dos indígenas, patriota, revolucionária, mulher. As imagens da escultura suspensa por guindastes sobre Buenos Aires, divulgadas pela imprensa conservadora argentina, foram, sem querer, a melhor metáfora para mostrar que Juana, e tudo o que ela hoje significa, permanecerá ali, inamovível na consciência do povo.

1 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/11/politica/1507757404_385615.html

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