No tabuleiro da Ásia, a quem interessa jogar a carta da guerra?

Em abril deste ano, no curso da guerra síria, os EUA lançaram um ataque estrondoso e midiático contra uma base aérea em Homs. Alegava-se uma retaliação contra o uso de armas químicas, cujo autor ainda não foi devidamente identificado. O espantoso número de 59 mísseis tomahawks lançados sobre um aeroporto reforçava tanto o espalhafato como a vontade do novo governo norte-americano de mostrar que “não estava para brincadeiras”.


Ilustração: Tainan Rocha

O ataque foi unilateral: não teve a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Além disso, foi realizado durante a visita do presidente chinês, Xi Jinping, aos EUA. Consta que Donald Trump lhe comunicou a ação durante um jantar oferecido na Flórida.

O ataque, cujo ganho estratégico na evolução do conflito foi nenhum, é digno de nota pelo simbolismo do curto circuito que parece tomar conta do núcleo decisório dos EUA. Por um lado, ofendeu a Rússia, aliada do governo sírio e com forte presença no teatro de operações. Por outro, ofendeu os chineses: o constrangimento foi tamanho que Xi Jinping não ofereceu qualquer declaração sobe o episódio, preferindo que a posição de seu país fosse dada por um porta-voz em Pequim (a China não quis ser deselegante manifestando na Flórida sua oposição a medidas militares unilaterais).

Não se pode negar que Trump obteve uma vitória política interna naquele momento. Mesmo adversários resolutos, nos partidos e na mídia, apoiaram o bombardeio – evidenciando que não existem exatamente pacifistas no amplo leque de forças que lhe faz oposição. As gestões anteriores à Trump, incluída a do Nobel da Paz Barack Obama, apostaram na guerra e mantiveram uma política de pressão constante sobre a Rússia, com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) pelo Leste Europeu. A ocupação russa da Criméia foi um ato defensivo e não um ataque, como a propaganda norte-americana a apresentou. Por outro lado, tratava-se a China com mais comedimento: Obama optou por um enfrentamento econômico que tinha no TPP – hoje abortado – sua pedra de toque.

O início da gestão Trump indicava uma virada nessa mesa quando buscou distender as relações com Moscou e adotar uma retórica mais agressiva contra a China, apresentada em campanha eleitoral como uma ameaça. Contudo, esse giro era ousado demais para um presidente questionado e ainda buscando alguma legitimidade (que nem o bombardeio na Síria lhe conferiu, apesar do triunfo político momentâneo). A oposição de republicanos e democratas, imprensa, militares, centros de pesquisa, foi contundente.

Assim, hoje, se há algo de novo no “triângulo estratégico” – na expressão de Kissinger – é o enfrentamento simultâneo dos EUA contra os interesses de China e Rússia. Qual seria o plano dos Estados Unidos? Por um lado, manteve-se o caminho aberto por Obama para derrubar governos nacionais e populares no continente americano, restaurando a região como “fortaleza” dos interesses de Washington. Por outro, apresentou-se pouca disposição ao diálogo e uma autoconfiança excessiva, bastante característica dos momentos de fraqueza estratégica. Se há um plano para além dos limites estreitos do America First, ele não está claro.

Seria um momento para tirar proveito dessa indefinição e ganhar posições, não estivesse o Brasil tomado por agentes da desarticulação das estruturas de poder do Estado. A China, por sua vez, do outro lado mesa, conhece bem as cartas que tem à mão e sabe aonde quer chegar. Um mês após o encontro com Trump, Xi Jinping recepcionou em Pequim mais de trinta chefes de Estado e governo para Cúpula da Nova Rota da Seda (Belt and Road Summit). Foi o primeiro fórum realizado para tratar do ambicioso projeto chinês de construir uma infraestrutura de transportes que, atravessando a Ásia Central, ligue suas regiões industriais à Europa, Médio Oriente e África.

Se levado adiante, esse projeto será a solução para um problema geopolítico chinês: a quase totalidade de suas exportações é realizada por via marítima, cenário que a torna vulnerável diante da supremacia do poder naval norte-americano. Na hipótese de uma guerra contra os EUA, a China não teria forças suficientes para impor-se nos mares e, consequentemente, poderia ser estrangulada economicamente. Por outro lado, o caminho pela Ásia Central lhe oferece uma alternativa mais segura e, ao mesmo tempo, mais barata, tornando seus produtos ainda mais competitivos.

À primeira vista, tanto os EUA como a Rússia não teriam motivos para celebrar esse substancial incremento do poder chinês. Aos Estados Unidos não interessaria perder a vantagem estratégica enquanto à Rússia tampouco agradaria a projeção da China em áreas que, tradicionalmente, ela considera sua órbita de influência, como a Ásia Central e o Cáucaso (onde, aliás, os EUA também têm atuado com ações de desestabilização). Contudo, Putin não só participou como foi recepcionado com honras na cúpula de Pequim, como se a festa fosse dele – ao modo chinês de sedução diplomática. Pressionado por sanções e pela presença da OTAN nas suas fronteiras, o governo russo optou por superar seu temor – concreto – de tornar-se um satélite da economia chinesa e negociar condições de adesão à Nova Rota da Seda. A expressão “Grande Eurásia” esteve presente nos discursos de Putin e Xi Jinping. Em que medida uma política diferente dos EUA para as relações com a Rússia teria contribuído para, ao menos, atrasar o projeto chinês?

A aproximação entre Rússia e China, que já vinha sendo traçada em outras instituições internacionais (como os BRICs), é, até agora, o fato geopolítico mais relevante do século XXI. Ela inverte a mesa do jogo que venceu a Guerra Fria: uma aliança pragmática entre EUA e China, isolando a URSS. Em 1972, após uma série de contatos prévios e viagens secretas, Mao Zedong recebeu Richard Nixon para anunciar o Comunicado de Xangai, pelo qual seus dois países assumiam, dentre outros pontos, o compromisso conjunto de não lutar pela hegemonia na Ásia-Pacífico e combater qualquer outro que o fizesse – no caso, a União Soviética. Tratava-se de um pacto pontual que, naquela conjuntura, serviu aos interesses tanto da consolidação e segurança da Revolução Chinesa como dos convulsionados EUA dos anos 60’s e 70’s.

Hoje, com Rússia e China cooperando mais que competindo, a posição dos Estados Unidos é que fica enfraquecida. A principal conseqüência, em uma visão clássica, pode ser a concretização do “pesadelo” de Halford Mackinder, geopolítico inglês que, em 1904, advertia que a Grã-Bretanha (então principal potência naval) deveria empenhar-se para impedir que um Estado controlasse uma imensa região no centro e norte da Ásia, que ele chamou de “área pivô” ou “Heartland”. Era a Rússia quem poderia, baseada naquela fortaleza natural, pressionar as periferias da Eurásia e forjar um poder terrestre capaz de derrocar o poder naval do Império Britânico. Se levada adiante, a “nova rota da seda” não será apenas um caminho, mas sim a interligação do continente eurasiático em um grande bloco econômico, cujo coração agora será a China. O sistema internacional, necessariamente, terá novas diretrizes.

Testemunharemos um Estado ascendendo desde dentro para o centro do sistema sem guerras contra as potências dominantes? Ou, olhando desde o outro lado da mesa, assistiremos ao momento em que uma ascensão desse porte ocorre sem uma resposta belicosa de quem necessariamente perderá poder em decorrência das mudanças? Ambos os casos seriam inéditos.

Fato é que os EUA têm evidenciado seu incômodo. O que é a retórica belicista de Trump contra Pyongyang – uma forma de mirar na China – senão uma tentativa de compensar no grito a fraqueza estratégica? Não é possível prever se de fato será ali que as tensões chegarão ao extremo ou se as falas dramáticas não passam de blefes, mas os generais que hoje ocupam os principais postos de poder no Estado norte-americano sabem que a Coréia do Norte não é um aeroporto quase vazio na Síria: as conseqüências de um ataque são incomensuráveis. Ao abandonar o caminho do diálogo com a Rússia, os EUA estarão dispostos, para conter a China, a jogar a velha carta da guerra? Essa é a questão que de fundo do atual deslocamento do eixo de poder mundial.

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