O afrobeat e a descolonização

A juventude brasileira vem, no decorrer dos últimos anos, descobrindo mais e mais músicas com outras sonoridades, que vão além do rock enlatado anglo-americano, do sertanejo universitário que ocupa 95% das rádios locais ou mesmo da música popular da moda no ultimo verão.

André Sampaio

Desde a música brasileira vinda de áreas anteriormente ignoradas como a região Norte, passando por ritmos com acento latino como a cúmbia, chegando até a musicalidade de origem africana, o fluxo de shows e festivais, ligado ao acesso via internet de serviços de streaming, propiciou aos ouvidos atentos e curiosos um descortinar de possibilidades estéticas que sempre existiram, mas pareciam não coexistir no mesmo planeta.

Dentre tantas tendências e estilos, um destaque merecido é para o nigeriano afrobeat, oriundo de uma mistura de diversas influências que vão do high life de Gana, do funk e jazz americanos e, naturalmente, das percussões e corais da música tradicional de diversos países da África Subsaariana.

O high life, assim como o afrobeat, tem em suas harmonias e arranjos a presença de naipes de metais que originalmente chegam à África pelos invasores (também conhecidos como colonizadores) europeus. Em países como Gana, Serra Leoa e Nigéria, o high life, remonta ao período colonial e estava mais ligado às elites aristocráticas do inicio do século XX.

O afrobeat surge na Nigéria, no final dos anos 1960, a partir de uma combinação de diversos estilos, como o funk, os cantos corais yorubanos, com percussões tradicionais do sul da Nigéria e muita improvisação jazzística, tudo isso como base para letras de forte conteúdo político.

Em suas performances, as bigbands de afrobeat apresentam uma música enérgica e pulsante. Os temas, normalment,e possuem longas introduções, com diversos solos dos vários instrumentos, tanto dos metais, quanto das cordas e teclas, trazendo ao ouvinte uma imensidão de texturas vocais, melódicas e percussivas, formando uma massa sonora contagiante.

Fela Kuti é o nome por trás da combinação de elementos que criam o estilo. Vindo de uma temporada nos Estados Unidos, ele traz em sua bagagem tanto as influências da música negra norte-americana como os discursos de liberdade, igualdade e combate ao racismo, entendendo o papel do negro na sociedade e ainda trazendo diversas questões a uma África ainda colonizada por países europeus. A música e as letras de Fela Kuti soam como uma fagulha nas instabilidades políticas de diversos países africanos e caem de imediato no gosto dos jovens mais atentos.

Desde um bar até uma fazenda que decretou como território independente, Fela Kuti usou a notoriedade de sua música e de seu nome de forma a confrontar as lideranças tradicionais de seu país. O saxofonista chegou a se candidatar à Presidência da Nigeria em um claro movimento de afronta às oligarquias de seu país.

Toda essa carga política e o contexto do afrobeat trazem uma força muito grande aos seus influenciados em todo o mundo. Bandas e artistas que têm como referêcia o ritmo africano não deixam afastados seus valores culturais e políticos. Fela Kuti possui seguidores em todo o mundo.

Grandes bandas e compositores da música pop, como Brian Eno, Paul Simon, passando por Chico Science e Nação Zumbi, até Gilberto Gil, têm no músico nigeriano uma referência tanto musical como de posicionamento militante.

É muito interessante perceber o poder de uma música que arrebata fãs onde chega e que influencia amplamente artistas, mas não tem por trás a força influenciadora de uma grande gravadora ou mesmo de uma origem colonizadora.

O afrobeat chega e ganha força em locais de resistência, assim como o reggae e o hiphop, mas com outra característica na sua origem. Tanto a musicalidade quanto as letras se fortalecem e impulsionam discursos antiimperialistas e contra-hegemônicos, ampliando a percepção da importância do consumo de uma arte independente, ou seja, um pensamento descolonizado.

No Brasil, existem diversos grupos que têm como referência o afrobeat. Aqui, a influência da música tradicional afro-brasileira, como ijexá e maracatu, serve de base sólida para a conexão do afrobeat com a música do país. Bixiga 70 de São Paulo, IFÁ de Salvador, Abayomy Afrobeat Orquestra do Rio de Janeiro, Zebrabeat de Belém do Pará, Abeokuta Afrobeat do Recife, dentre tantos outros, são grupos que tocam músicas autorais com forte interferência desta sonoridade africana.

Para ilustrar esta coluna, vale chamar atenção para este disco, recentemente lançado no fim de 2017, o ótimo trabalho do André Sampaio, guitarrista renomado da cena reggae nacional. André traz, em “Alagbe”, uma extrema conexão entre candomblé e afrobeat. 

No decorrer de 12 canções de sua autoria, o músico trilha relações entre os orixás e a contemporaneidade, cheio de mensagens fortes que carregam nas entrelinhas saberes ancestrais das religiões de matriz africana.

O nome “Alagbe” se refere ao ogã responsável pela preservação dos instrumentos musicais sagrados do candomblé. A expressão vem do Iorubá, idioma de origem na Nigéria e no Congo, falado secularmente em diversos países do sul do Saara, principalmente Nigéria, Benim, Togo e Serra Leoa, e principal língua falada no candomblé.

Neste segundo álbum, já mais amadurecido em sua pesquisa, André apresenta uma guitarra cada vez mais autêntica e com personalidade, arranjos ricos em referências que transbordam a obviedade do estilo, reconectando os tambores e o groove quebrado da bateria às deliciosas timbragens de guitarra da rumba congolesa e do highlife da África Ocidental.

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