Candeias, a fé do povo

“Bendita e louvada seja a luz que mais alumeia.”

Dois de fevereiro, na minha infância no Cedro, era a procissão das Candeias, a janela da casa enfeitada com a melhor toalha, um jarro com umas flores pobres colhidas nos monturos ou nos jardins alheios e uma vela acesa sobre um pires, se o dinheiro desse, ou a lamparina a querosene, que não podia faltar, por artigo de primeira necessidade.

A fumaça da lamparina tinha um cheiro forte, entranhado em minha memória até hoje. Guardo dali, do menino que fui, o cheiro daquela lamparina, os romeiros do Juazeiro a implorar: “Valei-me meu padin Ciço e a mãe de deus das Candeias”.

A fé, que era pouca, ficou pelos caminhos sertanejos que trilhei desde então. Mas guardei o respeito pela fé do povo pobre, fé da alma sertaneja, guardei a reverência pelo seu misticismo, pela sua incessante busca de proximidade com o sagrado. Virei um romeiro sem fé, que continua a visitar o Juazeiro ao menos uma vez ao ano e subir ao Horto, para fazer uma foto aos pés da estátua do Padre Cícero.

Na minha memória estão os benditos da procissão do Juazeiro, que vi tantas vezes. Hoje, mais uma vez, os romeiros estarão lá, vindos de quase todos os estados brasileiros, mas principalmente dos nove estados do Nordeste e do norte de Minas, aquela parte que é sertaneja e que é o décimo integrante do Nordeste.

Calcula-se que aproximadamente trezentas mil pessoas passarão pela romaria neste ano. Vão simplesmente passear, visitar os lugares sagrados do Padre Cícero; vão pagar promessas; vão agradecer pelas graças alcançadas e vão pedir mais, que a necessidade é sempre muito maior do que o pouco que temos. Haverá pedidos para curar doenças, para arranjar um casamento, para arranjar um emprego, pra que o filho perdido na cidade se livre das drogas, haverá pedidos para praticamente todos os males que nos afligem.

Haverá, certamente, em maior quantidade, orações, promessas e pedidos para que chova no sertão, castigado por quase uma década de seca, sem água, sem o de comer, a ameaça da sede e da fome pairando sobre o povo pobre. As chuvas devem ser as campeãs no peditório dos romeiros neste ano. E haverá festa, com bandas cabaçais tocando, com artistas do povo em profusão, pois que a fé do povo é também rica manifestação da cultura brasileira.

Os que não conhecem o Brasil não entendem aquela romaria, não compreendem a fé do povo. Até na fé as elites brasileiras são distantes do seu povo. Para elas, as romarias populares são manifestações de fanatismo. Acham bonito, acham chique, fazer a pé o Caminho de Santiago na Europa. Conheço uma que voltou encantada dessa viagem, estropiada de tanto andar a pé pela Espanha, mas, segundo ela, feliz por ter sentido a proximidade do divino. Olhou-me com quase nojo quando lhe indaguei:

− Já subiu a pé a estrada do Horto, no Juazeiro do Norte? Já fez com os romeiros a Via Sacra?
São assim, as nossas elites, distantes do povo. Fazem o Caminho de Santiago, choram compungidos na Basílica de São Pedro, voltam extasiados com as catedrais europeias, mas torcem o nariz para aquele povo pobre e feio que visita os lugares sagrados do Juazeiro do Norte e que voltam para suas casas em cima dos paus-de-arara, entoando os benditos aprendidos com Maria do Horto. Os romeiros, diferente das elites, não correm o risco de se perder, acharão os caminhos sempre, como diz o bendito, graças à luminária da Senhora das Candeias.

Hoje estou longe do Juazeiro e do Cedro, mas não deixarei passar em branco as Candeias. Vou acender uma lamparina dentro do peito, com um pavio de algodão bem torcido e embebido em querosene, e pedir chuva, muita chuva, que andamos precisados dela. Mas vou pedir também, que romeiro é pedinchão por natureza, pra que a gente consiga tomar de volta a democracia roubada.

É que a fé do povo, pra quem não sabe, não é apenas fé. Ela é também símbolo de resistência e de luta. Como já disse, perdi a fé da minha meninice, mas continuo romeiro da luta e da resistência.

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