Paternidade em tempos de crises e golpes

Este é o meu oitavo artigo e, diferente dos outros, escrevê-lo me trouxe pouquíssimo prazer. Há duas semanas que pelejo com ele, teclando uma frase rancorosa aqui, outra raivosa ali, uma meio depressiva acolá…

São 6:30 e eu ainda estou sonolento, já meu filho está a todo vapor em seu tapetinho. A trilha sonora do filme “Me Chame Pelo Seu Nome” toca no celular, olho para Francisco, que fez seis meses de vida ontem e ele sorri, como tem feito muito ultimamente, depois repete a sua mais recente novidade “Ma-ma, ma-ma, ma-ma”.

Neste momento me dou conta que apesar do prazo de entrega estourado, preciso continuar teclando até conseguir escrever algo minimamente razoável e que não deprima terrivelmente as pessoas que, de forma generosa, me doam alguns minutos de sua atenção.

Bem, vamos então à crise. Deixarei com vocês a tarefa de decidir se eu consegui não afundar no pessimismo…

Sempre antipatizei com a ideia de que existe uma “crise da masculinidade”, ou de que os homens estão em crise, e o motivo para isso é bastante simples. Esse discurso quase sempre apóia de forma escancarada, ou ao menos flerta, com a volta à uma suposta normalidade. No caso, uma em que os homens voltem a ser Homens, no maiúsculo – fortes, dominantes, chefes da casa e senhores das ruas –, e que as mulheres voltem a ser mulheres, no minúsculo mesmo – submissas, belas, recatadas e do lar.


Naturalmente, carrego similar antipatia à ideia de que os homens de hoje não podem mais ser “pais de verdade”. Mas o que seria afinal um pai de verdade e qual seria o seu papel?

Para muitas pessoas, esse pai é um simulacro das figuras paternas retratadas em seriados ou novelas da década de 1950: um excelente provedor que nunca tem a sua autoridade questionada e é o foco da atenção e da admiração de toda a família.


O seriado de televisão “Papai Sabe Tudo” (Father Knows Best) estreou nos EUA em 1954.

A palavra “crise” pode designar um evento emocionalmente significativo ou uma mudança radical de status na vida de uma pessoa; um momento instável ou crucial em que uma mudança decisiva está prestes a surgir; uma situação que chegou em um momento critico (1). Em latim, a palavra crisis tem entre os seus significados a fase em que se decide o curso de uma doença, em direção à cura ou à morte (2).

Enfim, não importa se estamos falando de um time de futebol, de uma empresa, de um relacionamento, da economia de um país ou do meio ambiente, quando uma situação de crise é detectada, a ação lógica é investir na mudança. Mas para o patriarcado, e talvez ainda para a maioria dos homens, esse não parece ser o caso. Por mais que a sociedade (e as mulheres) apontem para um lado, nossos pés permanecem fincados no chão e os nossos olhos fixados no retrovisor.

A ideia de que “com o suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:19) ainda representa um valor central para a formação da identidade masculina e do que significa ser um bom pai para uma parcela significativa da população. Eu posso até achar tal visão ultrapassada, porém, minimizar o sofrimento de homens que não conseguem preencher a categoria de provedor é desconhecer o impacto que as construções de gênero têm em nossas vidas e os seus desdobramentos (muitas vezes negativos) para as vidas de mulheres e crianças.

Um vídeo de Elisa Kreisinger/Pop Culture Pirate (infelizmente ainda não legendado) traz interessantes reflexões sobre o tema ao buscar responder a questão “Por que os homens brancos estão tão fragilizados?”. Nele, o sociólogo Michael Kimmel afirma que esses homens sentem-se traídos pois acreditam piamente que fizeram um acordo com a sociedade, o mesmo que seus pais e seus avós fizeram: “Eu serei um bom homem, um bom marido, um bom pai; eu trabalharei pesado e pagarei os meus impostos e, em retorno, serei capaz de comprar uma casa e de prover sozinho pela minha família”.

Como Kreisinger acertadamente pontua, no contexto dos EUA tal acordo sempre foi um privilégio quase que exclusivo de homens brancos, já que a casa própria, o emprego estável, o plano de saúde de qualidade e a aposentadoria digna sempre foram apenas um sonho para o resto da população e em especial, para as mulheres não brancas. O que dizer então das famílias brasileiras que sonham com o mesmo?

Não preciso aqui chover no molhado falando da brutal desigualdade existente no Brasil nem dos avanços ocorridos a partir de 2003, quando, finalmente, o “país do futuro” parecia ter entrado nos trilhos. A história de sucesso brasileira de repente virou objeto de interesse global, algo simbolizado pela hoje famosa capa da revista britânica The Economist, de novembro de 2009, que retratava o Cristo Redentor decolando.

E depois… bem, depois veio uma crise político-econômica e o golpe, que não se resumiu ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no dia 31 de agosto de 2016, mas a um backlash (reação contraria) que a população, o estado de bem estar social e o estado de direito (que ainda eram projetos em construção, a bem da verdade) têm sofrido quase que diariamente desde então.

No atualíssimo e necessário livro de Susan Faludi (1991) “Backlash – o contra-ataque na guerra não declarada às mulheres”, a autora afirma que um backlash acontece quando “…os avanços ainda são pequenos, antes que as mudanças sejam suficientes para ajudar um bom número de pessoas (…) usam o medo da mudança como ameaça antes que modificações de peso possam acontecer”.

E tem sido justamente utilizando o medo gerado pela crise econômica como subterfúgio que desde o dia 1 de setembro de 2016 o Congresso mais conservador desde 1964 tem trabalhado arduamente para emplacar pautas que beneficiam a elite política e econômica daqui e do exterior. Óbvio, tudo capitaneado pelo pai de Michelzinho, aquele do “grande acordo Nacional, com o Supremo, com tudo”, como dito pela dupla que dispensa apresentações.

Como sabemos, o ingresso à famigerada “Ponte para o futuro” do PMDB é reservado apenas a um seletíssimo grupo. Mesmo assim, os seus alicerces foram rapidamente fincados e o restante da construção está indo de vento em popa: o congelamentos dos investimentos públicos por 20 anos (PEC 214 ou PEC 55), que fere de morte o SUS e a educação pública de qualidade; a aprovação da terceirização irrestrita e de uma Reforma Trabalhista que só beneficia os patrões e gera uma profunda instabilidade, precarizando os vínculos de trabalhadores e trabalhadoras; o desmonte ou extinção de programas sociais como o “Minha Casa, Minha Vida” e a “Farmácia Popular”; bem como a exclusão das expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual” da Base Nacional Curricular (retrocesso já iniciado no Governo Dilma). E ainda temos a Reforma da Previdência, que desejam passar custe o que custar – e, como sabemos, vai custar muito.

A esta altura você provavelmente deve estar pensando que falhei miseravelmente na minha tentativa de não sucumbir ao pessimismo e se perguntando: “Ta bom, mas e a paternidade?”.

Sim, confesso que está bem difícil escrever palavras animadoras, mas o tema – melhor, o desafio para a paternidade – está descrito acima. Eu sou um ferrenho militante da paternidade dedicada, feminista, equitativa e amorosa, no entanto, seria extremamente ingênuo de minha parte pensar que a paternidade, assim como a maternidade, se resume a uma experiência pessoal, relacional e familiar.

Você provavelmente já ouviu o provérbio africano “É preciso uma aldeia para criar uma criança” (It takes a village to raise a child), não é? Pois bem, para uma parcela significativa da população, essa aldeia se resume a um diminuto núcleo familiar (quando muito) e a alguns amigos e amigas que também precisam se desdobrar e fazer malabarismos com trabalho, filhos/as, estudos e algum lazer.

Mas essa aldeia nunca contou apenas com pessoas para garantir a criação de seus membros mais novos. Ela conta com uma série de regras e rituais que garantem a segurança e o amparo mínimo para a complexa atividade que é transformar um bebê num adulto saudável (eticamente, inclusive) e capaz de, um dia, levar adiante essa mesma tarefa com outros bebês e crianças.

Agora imagine que essa pequena e já fragilizada aldeia, que sempre atuou no limite de sua capacidade para cumprir essa árdua tarefa, de repente, passe a sofrer ataques de todas as ordens; ataques que descortinam um cenário de total incerteza, em que as suas estruturas e rituais basilares ameacem desaparecer de um dia para o outro.

Como ficam os homens-pais e mulheres-mães? Como ficam as crianças e as famílias? Como absorver a brutalidade do ataque e como respondê-lo?

Adoraria ter respostas para essas perguntas, mas o máximo que posso trazer são algumas dicas. Temos eleições em 2018 e se não votarmos em políticos/as e em partidos que apoiaram o golpe, já estaremos fazendo algo relevante. Se aproveitarmos o embalo e conseguirmos manter longe de Brasília os/as políticos/as que hipocritamente falam em nome da “família”, mas que na verdade diuturnamente lutam para implementar uma pauta fundamentalista, machista, contra os direitos das mulheres, da população LGBT e contra as políticas e leis que verdadeiramente dão amparo às famílias, ainda melhor. Se elegermos mais mulheres feministas, enfim acreditarei que algum aprendizado foi retirado do duro golpe sofrido pela nossa jovem democracia.


Manifestação em São Paulo no dia 27/11/2016 contra a PEC 55.

(1) Dicionário Merriam Webster. Fonte: https://www.merriam-webster.com/dictionary/crisis
(2) Fonte: http://weber.blogs.sapo.pt/1975.html

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