Temer quer as fardas para esconder sua nudez

Não é saudável para uma República ver constantemente no noticiário o nome de seus juízes e generais, mais expostos que suas lideranças eleitas. Tanto a magistratura como as Forças Armadas são mais que meros cargos públicos, mas sim a própria expressão do poder do Estado, pilares do conceito de soberania. Pelo Poder Judiciário, o Estado garante a prerrogativa de sua jurisdição e pelas armas a capacidade de defender-se de agressões externas, ou seja, sua capacidade de manter-se independente.

Num Estado Democrático de Direito, como o definido por nossa Constituição Federal, o poder deve emanar do povo e por ele ser exercido, seja pela eleição de representantes, seja por mecanismos de democracia direta (que poderiam e deveriam ser muito mais utilizados). As definições políticas, assim entendidas as que definem os rumos do país, devem passar necessariamente pela vontade popular. O meio de expressão dessa vontade é o voto.

São as autoridades eleitas que, justamente por possuírem mandato popular, tem a prerrogativa de exercer o governo. Exatamente por sua natureza democrática, o processo de escolha dessas autoridades deve se dar na arena pública, dentro de um intenso debate que deixe claras as diferentes opções. É na política que acontece o enfrentamento democrático, é nela que se resguarda o espaço da liberdade. Claro que há problemas aqui, a começar por descompassos que não permitem um jogo limpo, e a concentração dos meios de comunicação de massa nas mãos de algumas poucas e partidarizadas famílias é um exemplo. Porém, esses problemas sempre deverão ser solucionados pelo exercício da política, aprofundando cada vez mais a democracia.

Juízes e generais não são representantes do povo, mas sim expressão do poder do Estado cuja orientação – e limites – se dá por leis formuladas pelos mecanismos democráticos. Não devem servir a partidos, mas tão somente às determinações legais moldadas pela vontade popular livre e continuamente manifestada por meio do voto. Quando os juízes e generais chegam à ribalta, o que está em jogo não é a projeção desse ou daquele ocupante do cargo, mas sim o futuro do Judiciário e das Forças Armadas enquanto instituições essenciais para um Estado Democrático de Direito.

No que tange ao Judiciário, a atuação midiatizada por si só, em qualquer caso, é prejudicial. Quando ela se une a uma vontade de protagonismo político é ainda pior. Juízes dando entrevistas a órgãos de imprensa sobre processos em andamento, anunciando antecipadamente decisões, manifestando abertamente sua antipatia contra réus que tem direito a um julgador imparcial e equidistante e manifestando-se sobre temas que deveriam estar na alçada dos poderes eleitos, são fatos que expõe o Judiciário ao perigo.

Ao explicitar um posicionamento próprio de partidos políticos e aceitar a ribalta, a magistratura será tratada como partido político, com enorme prejuízo para a democracia e a garantia dos direitos. Talvez em virtude da sensação de proteção e poder trazida pela cobertura favorável da mídia ou mesmo da falta de vivência política de magistrados, desabituados ao embate público, há uma cegueira ou inconsequência diante do abismo que tem pela frente.

A posição do Exército é ainda mais delicada, já que sua intervenção na vida política do país foi constante em toda a história republicana. A ordem constitucional surgida em 1988 conseguiu delimitar papéis e funções que levaram a um equilíbrio entre o poder civil e as armas. Foi um equilíbrio precário, é verdade, já que persevera o silêncio sobre crimes cometidos pelo último ciclo ditatorial, mas de alguma forma houve um equilíbrio. A criação do Ministério da Defesa foi mais uma afirmação institucional do controle democrático e civil sobre as armas do Estado.

Por sua vez, a formulação da Política Nacional de Defesa e do Livro Branco da Defesa Nacional, com debate e aprovação pela Câmara Federal e pelo Senado, constituiu outro passo nesse sentido. As Forças Armadas definiram sua identidade no novo período afirmando a defesa das riquezas nacionais, especialmente a Amazônia e, mais tarde, também a Amazônia Azul. Enfim, até o golpe de 2016, havia um caminho sendo construído no sentido de consolidar as instituições democráticas no país e, com elas, também o papel que cabe aos militares dentro de um Estado Democrático de Direito.

Mas, pressionado à esquerda e à direita, o governo Temer está disposto a homenagear a forma pela qual subiu ao Planalto desconstruindo também esse importante e difícil avanço. Impopular, rifado pelas forças econômicas que o apoiaram (e desesperadamente procuram fabricar outro candidato qualquer), Temer imagina que as fardas esconderão a nudez do rei quando nem as togas conseguiram isso ao sustentar a legalidade do golpe.

Foram vários os movimentos que levaram à nomeação de um general como interventor na segurança do segundo maior estado da federação. Houve ensaios de demonstração de força, como o decreto que autorizou a ocupação de Brasília pelo Exército a pretexto de proteger a capital de atos de vandalismo, em maio de 2017.

Houve gestos simbólicos como a internação de Temer em uma base militar no dia da votação na Câmara da denúncia encaminhada pela Procuradoria-Geral, em outubro do ano passado, e a rara participação de um presidente em uma reunião do Conselho Militar de Defesa, no último dia 22. E há agora a nomeação de um general para o cargo de ministro da Defesa, algo inédito, rompendo a tradição de sempre haver um civil no posto.

Nesse contexto, a militarização da intervenção federal no Rio é anunciada como modelo enquanto outros governadores manifestam interesse em saída similar. Sem entrar no tópico da efetividade dessa medida (e há muitos especialistas em segurança pública a questionando), basta dizer que não é papel das Forças Armadas fazer o trabalho da polícia. O próprio general Villas Bôas, comandante do Exército, afirmava em junho do ano passado no Senado Federal, ser contrário ao emprego de militares em operações dessa natureza.

Sua afirmação, contundente, foi: “não gostamos desse tipo de emprego (…) Estamos apontando uma arma para a população brasileira. Estamos numa sociedade doente”. O mesmo Villas Bôas, na semana passada, defendeu que sejam estabelecidas medidas legais, de caráter excepcional, para que os militares possam atuar no cumprimento da missão recebida. Um reconhecimento tácito de que o preparo de soldados não é adequado para operações policiais.

Sendo assim, quem ganha com esse rebaixamento das Forças Armadas? Por um lado, Temer e os generais que o cercam e aconselham (e não se pode dizer que sejam unanimidade na corporação). Os generais, pelo poder e destaque que a ribalta lhes dá; Temer por esconder sua enorme impopularidade atrás das fardas e dividir seu ônus pessoal com uma instituição bem avaliada pelos brasileiros, conforme pesquisas de opinião.

Mas há um terceiro vencedor. Ao alocar os militares em funções policiais, o governo golpista retira a centralidade da função essencial das Forças Armadas: preparar-se para responder a qualquer ameaça contra a soberania nacional. Também aqui há um ataque aos fundamentos de um Brasil independente. Um Exército especializado em policiar não é o mesmo apto a defender a soberania do país.

O golpe de 2016, mais que afastar a presidenta Dilma, causou um colapso nas relações entre os poderes formais e reais da República. Mesmo que não tenha sido a intenção de seus agentes, tratou-se também de um golpe contra a “Presidência” em si. Hoje, há uma disputa aberta para se ocupar o vácuo de poder deixado. Enquanto o Judiciário avança sobre competências e palcos que não deveriam ser os seus, os militares são chamados de volta à cena política pelas mãos de um presidente golpista (respaldado pelas decisões de magistrados).

O foco vai para juízes e militares enquanto Temer e os seus se escondem atrás do palco, acreditando talvez que podem manter o controle. A aposta é alta e a história nos mostra que não é razoável jogar com as instituições da frágil democracia brasileira.

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