Augusto Boal, lembrança

Augusto Boal nasceu em um 16 de março de 1931. Lembro que na sua morte, em 3 de maio de 2009, escrevi sobre ele e sua militância:

Os necrológios envergonhados dos jornais se abrem com o registro "Morreu na madrugada deste sábado, aos 78 anos, o diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal", para depois, num acréscimo, dizerem coisas como "em 1971, foi preso pelo regime militar, pelas ligações com o Partido Comunista do Brasil. Três meses depois, ao ser solto, foi para os EUA e, em seguida, para Argentina e Portugal". E as folhas mais mostram quanto mais escondem, pois fica patente o constrangimento do registro do falecimento de um homem como tu, ao mesmo tempo que mencionam, de longe, a razão do teu viver. Para os mais jovens, que leem um necrológio de tal natureza, os teus três meses de prisão podem até parecer que foram algo como uma repressão passageira, leve, pelo crime de uma ideologia então clandestina. Historinha de gente velha. Isso porque, nesses registros, o pano de fundo do Brasil da ditadura, o teatrinho dos tiros trocados entre terroristas e patriotas, a tortura, os assassinatos, a infâmia do Brasil de quando foste preso, até parece que "já passou, não é?, a dorzinha foi embora". É a isso que chamam de edição, uma nova edição: omitir em primeiro lugar, para depois torcer, distorcer, insinuar coisas que são veneno. Quem te mandou ser ligado a partido ilegal na ditadura?

Se saímos dos jornais, e vamos para as grandes redes na web, dos provedores, recebemos a tua penúltima notícia como "Na década de 70, por estar exilado do país pela ditadura militar, difundiu seu método pela Europa. O seu trabalho pelo Teatro do Oprimido rendeu uma indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2008", e a tua foto, sem a substância do que eras, apenas o rosto de um coroa meio maluco, cabeleira grisalha, assanhado, camisa florida, é de doer na retina. A tua mais recente notícia se insere no menu de "famosidades". Estás em um menu onde Amy Winehouse desmaia no Caribe, Ivete vai homenagear a mãe em tributo ao Rei, cunhado de Britney sai do hospital. A máquina da mediocridade, do falso, do business, contra a qual tanto lutaste, tenta nivelar a tua pessoa a divertimento. Isso quando apareces, porque em outros portais nem te deram o desprezo de apareceres ao lado de gripes e porcos.

Para te dizer adeus, como a lembrar a composição que Chico Buarque te dedicou em Meu Caro Amigo, nada melhor que um trecho da Carta do MST endereçada a ti, que a web livre divulgou há pouco: "Generoso, expôs sempre por meio dos relatos de suas histórias, seu método de aprendizado: aprender com os obstáculos, criar na dificuldade,

sem jamais parar a luta". Leio a frase e me ponho a pensar, a ruminar, em como teria sido bom se tivesses cruzado o caminho de um adolescente magro e faminto do subúrbio de Água Fria, zona norte do Recife. Sem pai, sem mãe, de patrimônio só o desejo, um dia aquele menino em 1965 quis ser ator. Sim, que mais queria, o que só queria? Ser ator de teatro, por que não? Então ele se dirigiu e procurou estímulo com um endinheirado empresário, que se dedicava ao teatro nas horas vagas.

– Seu Costa, sabe?… será que o senhor, que conhece tanta gente, será que não podia me indicar para trabalhar no teatro?

Seu Costa em 1965 divertia-se no Teatro de Amadores de Pernambuco, lugar da classe média muito sensível no Recife daquele tempo. O novo burguês então olhou o rapazinho de cima a baixo, mediu o jovenzinho que de gente era só olhos:

– Você?! Você entrar para o teatro?! É o mesmo que entrar num mato sem cachorro.

E o adolescente de 14 anos desistiu do teatro, de amadores e profissionais, para sempre. Penso agora, como teria sido bom que ele em 1965 soubesse que no teu teatro havia uma saída.

Ao ler a carta do MST há pouco, sinto que não poderia dizer "Nós, trabalhadoras e trabalhadores rurais sem terra de todo o Brasil, como parte dos seres humanos oprimidos pelo sistema que você e nós tanto combatemos, lhes rendemos homenagem, e reforçamos o compromisso de seguir combatendo em todas as trincheiras". Eu não lavro o campo, nada sei plantar, não crio galinha, nem mesmo tenho a coragem da luta pela terra desse movimento. Mas bem posso lembrar outros oprimidos.

Lembro de um artista no bar Marola, em Olinda, que pedia dinheiro como pagamento para escrever nomes de clientes em grãos de arroz. Como são eloquentes os artistas! Como sabem simbolizar com a precisão da flecha que atinge o olho da mosca. Para comer, esse artista no Marola escrevia minúsculo em grãozinhos de arroz. Era um jovem, pálido, e é interessante como o vejo vestido em túnica grega a desenhar a mediocridade de toda a gente em grãos minúsculos. Melhor que a sua arte era o orgulho da sua arte. Enquanto percorria as mesas, ele era insultado. Dele zombavam os miseráveis com dinheiro na carteira:

– Se eu fosse viver disso…

– Planta arroz, dá mais futuro …

Enquanto ouvia tais comentários o artista e seu orgulho, albatroz ferido, cantava baixinho, de Milton Nascimento: "Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural. Que ligava Minas ao porto, ao mar, caminho de ferro, andar, andar".

Por isso escrevo ao fim. Em lugar da visão do teu corpo a queimar, o corpo, só o corpo, aquilo e aquele que não mais é Boal, em lugar de qualquer visão mórbida, melhor lembrar-te ressurgido, a continuar tua vida no corpo e alma desses artistas que se erguem, e no meio da humilhação continuam, apesar de tudo, a andar, andar. De Minas ao porto, até o mar.

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