"Sem Amor"

Ódio demais. Em tom de rancor e vingança, diretor russo Andrei Zuyagintsev discute a conflituosa relação de jovem casal e a fuga de seu filho adolescente.

O ambiente é árido, o clima opressivo, neste “Sem Amor”, centrado nas conflituosas relações amorosas e familiares do jovem casal russo, de classe média, Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin), na Moscou do século XXI. A forma como o diretor/roteirista russo Andrei Zuyagintsev (Leviatã, 2014) estrutura a narrativa para desenvolver sua história, dividindo-a em quatro partes, põe o espectador diante tanto da paisagem do inclemente inverno quanto da elevada temperatura com que o casal se agride e lança sobre o filho Alyosha (Matvey Novikov) a culpa pelo desacerto de viverem igual a uma família e agirem como inimigos.

Diante dos compradores de seu apartamento de 85, 4 m2, Zhenya dá um tapa na cabeça do garoto de 12 anos para que os cumprimente e ainda o critica. “Ele tem doze anos, mas é selvagem!” Comedido, ele se limita a dizer: “Para, mãe!” Ao que ela retruca, irada: “Sem “para mãe”, já falei!” Ou mesmo quando Boris chega à noite e se dirigi a ela: ”Descansando?” Sua resposta vem num tom de quem foi ofendida: “Desde quando (você) se importa?” Esta é apenas uma mostra do que virá ao longo da narrativa.

Quando a corda por demais estendida se rompe, resta o rancor, logo preenchido pelo inesperado, cuja intromissão irá desvendar a culpa de cada um deles. Não que Zuyagintsev penda para um lado ou outro, isso cabe ao espectador. Zhenya é inquieta, insubmissa, capaz de destilar sua ira sem poupar o próprio filho. Mas, Boris é frio, dissimulado, incapaz de admitir parte da culpa pelo rompimento. A câmera de Zuyagintsev espreita-os, pondo a nu as fraturas e as fragilidades de ambos. Devagar, vai mostrando os conflitantes interesses de cada um, que não incluem Alyosha,

Alyosha é vítima de desamor e do divórcio

A configuração de classe de cada um deles se dá de forma quase imperceptível. Zuyagintsev vai pelo usual. Boris em seu automóvel, Zhenya de ônibus. Ele respeitável operador de crédito num banco, ela funcionária comum num escritório. Têm seus amigos e, enfim, um não cabe na ambição do outro. Ambos se afastam de Alyosha, pois não chegam ao entendimento sobre a qual deles cabe a guarda do filho. Trocam desaforos cara a cara e pelo celular e Boris deixa o garoto com a mãe. Ocorre que, em seus 12

anos, o menino tem seu próprio modo de encarar esse fato. Sua decisão irá desencadear o que os pais menos esperavam. E talvez nem ele.

Os mútuos ataques chegam ao impasse, quando Zhenya, no dia seguinte ao divórcio, liga para Boris na casa de Masha, sua atual companheira, grávida de um filho seu, lhe comunicando que não encontrou Alyosha ao chegar ao apartamento à noite. “Não tenho notícia dele há 24 horas”. Um lança a culpa sobre o outro; “Então a culpa é minha agora? Você nem sabe se ele esteve em casa ou não”, ataca-a, Boris. A exemplo dele, ela vive agora com seu novo companheiro, o empresário Anton (Andris Feiss), com o qual desabafa: “Eu não amava meu marido. (…) engravidei por descuido. Estava com medo de abortar (…), de ter o bebê”.

Com estes fios narrativos, Zuyagintsev e seu corroteirista Oleg Negin criam a estrutura dramática que põe em cheque o tipo de pais que Zhenya e Boris eram para Alyoscha. Entre dois há mais que rancor, ele se viu no direito de descartá-la, ao encontrar e engravidar a jovem Masha (Yanina Hope). É emblemática a sequência no carro dele, em plena madrugada numa rodovia na periferia de Moscou, quando ela explode. “Agora me explique, como você me prometeu amor e felicidade e só tive dor e decepção, Mentiroso! Filho da mãe! Eu nunca amei você!”

Dor traz a sensação de perda e culpa

Contudo, se Zuyagintsev expõe as rachaduras da soterrada relação entre eles, e ajuda o expectador a entender de onde vem o ódio que dela emana, transforma-a numa narrativa sustentada pela que se desenvolve paralelamente. O centro desta é a investigação do paradeiro de Alyosha que termina por reunir Zhenya e Boris, através da dor e a urgência de reparar a negligência e a forma como o trataram ao se divorciarem. A dor aqui traz a sensação de perda e culpa e, ao mesmo tempo, não os levam a se penalizar como cristãos ortodoxos ou ter qualquer crise de consciência.

O espectador se vê enredado desde o início numa tétrica atmosfera, através das teias trançadas por Zuyagintsev, em elaborados e belos movimentos de câmera em longos planos sequência. Cipós, galhos, folhas e troncos de árvores molhadas, devido ao rigoroso inverno russo, formam densas redes em torno do rio enregelado. A floresta pela qual circulam os agentes de emergência, acompanhados por Boris, se tornam labirintos banhados pela fria luz solar. Cada etapa fracassada da busca enfatiza o tétrico clima.

Não bastasse a narrativa, matizada pelo claro-escuro da fotografia de Mikhail Krich, os agentes de emergências, Boris e Zhenya, ao se moverem em ambientes/cenários tomados pelo claro-escuro em tons cinza, azul e turquesa se toram espectros. Desta forma, Zuyagintsev monta contrastes, como o da floresta no qual o vermelho das capas de chuva dos agentes se diferencia dos negros troncos das árvores. O mesmo se dá nos corredores e nas salas e nos quartos dos casais Zhenia/Anton e Boris/Masha. E o espectador se mantém em suspensão, torcendo por Alyosha ser localizado.

Frase de agente martela na cabeça do casal

Ainda que o centro da narrativa deste “Sem Amor” seja o desapego de Boris e Zheina a Alyosha e o acerto de contas entre eles, Zuyagintsev não os julgam ou penalizam. Eles, de certa forma, refizeram suas vidas, encontraram novos companheiros. Impossível para eles, no entanto, é esquecer o momento em que o chefe dos agentes de emergência lhes diz numa sala de baça luz, depois de meses de busca: “Será duro!”. Nunca uma frase ecoou com tanta força no cinema e na consciência do espectador, acompanhada das repetidas batidas de martelo numa chapa de aço. Dói!

Sem Amor (Nelyubou) Rússia. Drama. 2017. 127 minutos. Trilha sonora: Eugueni Galperine/ Sacha Galperine. Montagem: Anna Mass. Fotografia: Mikhail Krich. Roteiro: Andrei Zuyagintsev/Oleg Negin. Diretor: Andrei Zuyagintsev. Candidato ao Oscar 2018 de filme estrangeiro.

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