EUA e Rússia se encaram na Síria, mas confronto direto é improvável

O novo alto escalão do governo norte-americano mostrou a que veio. A guerra na Síria tornou-se para Trump a oportunidade de compensar, diante do mundo e do público interno, sua derrota ante a determinação norte-coreana, que o fez retroceder após um ano de agressões e ameaças de guerra.

Ilustração: Tainan Rocha

Na sequência da aceitação de um convite ao diálogo com Kim Jung-un (uma vitória impressionante de Pyongiang), os EUA lançaram mais de 100 mísseis de cruzeiro sobre o território sírio. O pretexto foi retaliar Damasco por conta de um ataque com gás tóxico que teria ocorrido por ordem do governo de Bashar al-Assad. A cidade alegadamente atingida, Duma, na periferia da capital, é controlada pelas forças oposicionistas apoiadas pelos EUA.

A propaganda do “bom-mocismo” por trás de decisões de guerra já deveria ter levado a mais reações desconfiadas. Quando a hipocrisia é de qualidade muito ruim, é hora de começar a dizer a verdade, escreveu Brecht.

Não é a primeira vez que a utilização não comprovada de armas químicas é utilizada como pretexto para exibições de força. Durante a guerra do Iraque contra o Irã, nos anos 80, os Estados Unidos se valeram da mesma alegação para, depois, descobrir-se que foi uma mentira. Naquela ocasião, já no fim do conflito, em 1988, o Iraque, então aliado dos EUA (é preciso sempre lembrar disso) usou gás tóxico para atacar a cidade Halabja, de população curda, matando milhares de pessoas. Mas, sem o menor pudor, a propaganda norte-americana atribuiu ao Irã esse ataque, acusando-o de ser o responsável pelo uso de armas químicas. Depois, já tarde, os fatos vieram à luz.

Quando Saddam Hussein deixou de ser um aliado conveniente, a propaganda norte-americana passou a apresentá-lo como um ditador a ser destituído pelos bons moços. Duas guerras foram travadas contra o Iraque. Na segunda, que levou à devastação do país, toda a legitimidade do ataque se deveu a uma alegada existência de armas de destruição em massa que poderiam ser utilizadas por Bagdá a qualquer momento. Provou-se depois, mais uma vez muito tarde, que tudo isso não passava de uma farsa urdida para angariar apoio a uma guerra ilegal, vetada pelo Conselho de Segurança da ONU, e injustificável.

Quem garante que os ataques com armas químicas em Duma realmente ocorreram e realmente foram realizados pelo governo sírio? A rapidez da resposta militar dos EUA, sem sequer aguardar o resultado de uma investigação a ser conduzida por inspetores da ONU, mostra um desejo mal contido de tornar verdade uma versão construída nos seus interesses. De novo…

O bombardeio da Síria segue o mesmo velho roteiro: um governo “mau”, dono de armas cruéis e capaz de usá-las contra inocentes deve ser contido pelos defensores da democracia. Por que esse mesmo raciocínio não vale para o governo saudita, por exemplo, nem os longos discursos de Obama e nem os tweets de Trump se dão ao trabalho de explicar. Assim como não explicam de que forma as guerras que destruíram Iraque, Afeganistão, Líbia e vitimam há anos a população síria contribuíram para a paz. Nunca foi elevada, mas tem caído cada vez mais a qualidade da hipocrisia.

Qual o objetivo norte-americano com esse ataque? O primeiro, já mencionado, é passar à opinião pública interna uma imagem de força. Durante a campanha eleitoral, Trump criticava a fraqueza de Obama e inclusive dizia que retiraria os EUA da Síria. Hoje, amparado em falcões da ultra-direita do Partido Republicano, ele procura conectar-se às ideias mais primitivas de “inimigo” que educaram a população de seu país: “ditadores maus” (quando convém) e “Rússia”.

Mas, para além disso, os EUA procuram recuperar o terreno perdido no Oriente Médio, para onde a Rússia voltou quando optou pelo apoio a Assad no combate ao Estado Islâmico. Para tanto, era preciso enfraquecer e isolar essa aliança que ainda conta com o a presença e apoio do Irã. Nesse sentido, desestabilizar o governo sírio em um momento no qual sua vitória militar se aproximava implica em prolongar a guerra.

Os ataques mostram que os EUA, apesar da confusa dança das cadeiras nos seus cargos mais importantes, querem deixar claro que estão no jogo. Para isso, dão fôlego tanto às forças que fazem oposição a Damasco nessa mal chamada “guerra civil”, como a um encurralado Estado Islâmico (EI).

O bombardeio do último dia 13 procurou derrubar da mesa as peças de um tabuleiro pacientemente construído por Moscou e que, gostem ou não, estava sim levando o EI à derrota. Como o preço do fim daquele grupo terrorista é uma Rússia fortalecida (e um Irã também), a paz não é um bom negócio para Washington. Foi para prolongar a guerra – e o sofrimento do povo sírio – que os bombardeios foram realizados, não para contê-la.

Dito isso, esse ataque à Síria é o início de um conflito em larga escala? Não! Na verdade, os 105 mísseis lançados, a acreditarmos na conta do tenente-general Kenneth McKenzie Jr., são mais um elemento dento do cenário amplo de um confronto global e já em curso no qual se decide a distribuição de poder no século XXI. Uma iminente escalada bélica que envolva diretamente as principais potências não está no horizonte neste momento.

Muito embora as declarações de russos e norte-americanos tenham sido duras, não houve nenhuma correspondência nas ações. A começar pelo próprio bombardeio: foram alvejadas instalaçoes de pesquisa militar sírias e evitou-se com precisão atingir qualquer alvo russo. O general Valery V. Gerasimov, comandante russo, passou a semana anterior advertindo que Moscou reagiria a ataques dos EUA. Contudo, incluiu um significativo “mas”: a retaliação só viria caso suas próprias bases e militares fossem atingidos. Era a senha para um limite à ação norte-americana, rigorosamente respeitado por Washington. O Kremlin afirmou com rapidez, logo após os ataques, que nenhum de seus soldados ou instalações sofreram quaisquer danos. Logo…

Mesmo a adoção de novas sanções econômicas contra a Rússia, em “punição” por seu apoio a Assad, foi ontem negada por Trump, quando seus funcionários as colocaram na mesa como opção em análise. Nesse momento, não interessa nem aos EUA e nem à Rússia uma escalada que leve a um confronto direto. Washington se declarou satisfeita, mesmo sabendo que uma eventual vitória, ainda a ser mensurada, é somente tática e não estratétiga (até porque, se há uma estratégia, ela ainda não se mostrou de forma clara). Por sua vez, Moscou entendeu o bombardeio como mais um lance em um longo conflito de paciência e determinação.

Por agora, a guerra direta entre as potências é de propaganda e diplomacia. Por isso, não será surpresa se o agressivo tweet de Trump contra Moscou (“a Rússia deve decidir se continuará nesse caminho sombrio ou se se unirá a nações civilizadas como uma força para a estabilidade e a paz”) tiver o mesmo destino dos muito piores lançados contra Kim Jung-un.

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