Bonapartismo à brasileira

Alguns livros, mesmo tendo ultrapassado mais de um século desde que foram escritos, continuam a surpreender por sua atualidade e abrangência.

É o caso de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” , na verdade, um artigo escrito por Karl Marx entre dezembro de 1851 e março de 1852, no qual ele analisa a conturbada situação política da França naquele período. Nesse escrito magistral, ao analisar uma situação conjuntural sob a perspectiva das classes sociais, Marx aponta como a burguesia francesa abandona os ideais que orientaram suas lutas em 1789, deixando definitivamente sua condição de classe revolucionária quando, em junho de 1848 participa da aliança com outras classes possuidoras para reprimir violentamente a rebelião de trabalhadores. Mas Marx vai mais além. Analisando esses fatos, estabelece uma série de conexões entre o caso particular, conjuntural, da burguesia francesa e a burguesia enquanto classe, identificando assim uma tendência que a tem caracterizado em outros contextos históricos: trata-se da tendência que leva a burguesia a entregar o poder político ao primeiro aventureiro que demonstre uma boa dose de ambição, vaidade ou falta de escrúpulos e que seja capaz de garantir seus interesses diante de uma iminente tomada de poder político pelos trabalhadores.

Na França, esse aventureiro apareceu sob a figura de um obscuro sobrinho de Napoleão Bonaparte chamado Luís. Este indivíduo “vulgar e repulsivo”, segundo Marx, já havia conquistado as graças do eleitorado francês da Segunda República, tendo sido eleito presidente em dezembro de 1848 com um persuasivo discurso onde prometia a volta da “ordem”. Durante o mandato é cada vez mais investido de poderes, acumulando força política suficiente para dar um golpe de Estado em 1851 e abrir caminho para, em dezembro de 1852 , colocar sobre seus ombros a púrpura imperial, restaurando a monarquia na França e promovendo um dos maiores retrocessos sociais e políticos de que se tem notícia .

Essa tendência burguesa de delegar o poder político quando ela mesma não se encontra em condições de conquista-lo ou exercê-lo, pois a pauta voltada para seus interesses econômicos não lhe permite ser vitoriosa em um processo eleitoral limpo e livre, ficou assim conhecida como “bonapartismo”, conforme já sabemos. Casos de bonapartismo têm sido identificados em vários países. Na América Latina, há quem diga que as ditaduras que se instalaram no continente a partir da década de 60 do século passado, são exemplos típicos de bonapartismo levado a cabo pelas burguesias nacionais em conluio com o capital internacional, com o objetivo barrar o avanço das forças populares .

Essa tendência bonapartista novamente aflora na burguesia brasileira nos dias atuais. Embora com métodos diferentes de outros momentos de nossa história, a burguesia patrocina a tomada de poder por um testa de ferro, impondo um Estado autoritário com forte poder repressivo que opera pelo uso da força e de um aparato burocrático disposto a esmagar os direitos e a organização dos trabalhadores .

No Brasil do século XXI a burguesia novamente se articula para inviabilizar um projeto voltado para atender às demandas históricas do povo, quem sabe temerosa de que, em um futuro talvez não muito distante, este projeto popular avance e ameace não só o seu poder político mas também a sua dominação econômica.

Constatando a sua incapacidade de, pelas urnas, emplacar o seu projeto de poder, mesmo com todo o aparato midiático hegemônico a seu favor, a burguesia brasileira recorreu novamente ao golpe de Estado como primeiro passo para, não só depor a presidenta eleita, mas também desestabilizar todo o campo progressista associando-o indiscriminadamente à prática de ilicitudes e jogando na vala comum da execração pública toda a atividade político-partidária. Mas, não prescindiu da “inovação”, essa palavra hoje tão cara ao ideário burguês e, mesmo com o uso da força, que se manifesta por meio do protagonismo do aparato policial com direito a encenações de grande impacto midiático, revestiu seus atos de arbítrio com um verniz de legalidade para o que contou com a prestimosa colaboração de alguns setores do poder judiciário e, obviamente, da mídia hegemônica, que continuou com seu trabalho de justificar tudo isso na mentalidade sempre receptiva das classes médias quando o assunto é endossar o discurso moralista e incitador do ódio contra qualquer projeto de país que lhe possa lembrar que, pelo menos no quesito dinheiro, está mais próxima do povo do que das elites.

Assim, a burguesia brasileira de nossos dias e seus aliados, ou seja, todos os que não sendo burgueses “stricto sensu”, mas que comungam com os interesses dos donos do dinheiro, conseguiu lograr êxito ao depor a presidenta Dilma e retirar o campo progressista da direção do Estado. Porém, é inegável que não alcançou seu intento de aniquilar politicamente essas forças progressistas, o que pode ser comprovado pela determinação em tentar retirar da disputa eleitoral de 2018 o ex-presidente Lula.

Mas a burguesia no Brasil deve ainda enfrentar um outro desafio: Temerosa diante da articulação e do fortalecimento do campo progressista, depara-se com a necessidade imperiosa de “fabricar” em espaço tão restrito de tempo, um candidato que tenha condições de disputar as próximas eleições e legitimar, por meio do voto, o seu projeto de poder. Porém, encontrar esse novo Bonaparte não tem sido tarefa das mais fáceis. A falência de seu projeto golpista fica cada vez mais evidente na baixíssima popularidade do atual ocupante da presidência da República, que , além disso, vê-se envolvido, juntamente com boa parte de seu séquito de apaniguados, em denúncias de corrupção. Some-se a isso a falta de opções do campo conservador, uma vez que seus principais nomes também se encontram envolvidos em acusações de corrupção; tantas que se tornam insustentáveis as manobras protelatórias para poupá-los dos devidos processos. E, o mais desesperador para esta burguesia que quer posar de democrática e esclarecida: o candidato “anti-esquerda” melhor posicionado nas pesquisas é um fascistóide histriônico que não serve como elemento legitimador de seu projeto, podendo, no máximo, ser útil para, em um processo eleitoral, impedir a retomada do poder pelo campo progressista, sendo imediatamente descartado quando já não mais interessar . Já vimos esse filme em outras circunstâncias e com outros personagens.

Portanto, urge para a burguesia encontrar um nome palatável para um eleitorado diversificado e que possua potencial para ser transformado no “salvador da pátria”. Como deverá ser esse novo Bonaparte? Podemos arriscar algumas características. A primeira delas seria não fazer parte do mundo da política. Seguindo o discurso de desqualificação da política, esse candidato deve ser “apolítico”. Sua carreira não deve ter sido construída no campo das disputas políticas, mas deve, de preferência, encarnar o ideal meritocrático do “self made man” aquele que se fez sozinho. Já foram apontados nomes fora da política vinculados ao mundo televisivo e ao empresariado, mas, definitivamente, não convenceram. Assim, esse novo Bonaparte deverá ser procurado em instituições do Estado que não sucumbiram aos ataques difamatórios. Ao contrário, são alardeadas como redutos da honestidade, da imparcialidade e do republicanismo que, segundo o senso comum, sempre generalizador, rotula como “país de corruptos”. No atual contexto entre as instituições que mantiveram inabalados o seu prestígio perante a opinião pública está o judiciário. Há, então, uma boa chance do novo Bonaparte vir do judiciário, tendo em vista todos os mecanismos de consagração que foram construídos ao redor de alguns de seus membros.

Por fim, como características subjetivas, esse novo Bonaparte, além de ser capaz de passar uma imagem austera, deverá ser vaidoso o bastante para que se encante com as benesses e as adulações do poder . Deve ser também ambicioso para deseja-lo, mas nem a vaidade nem a ambição devem ser tão grandes a ponto de fazê-lo esquecer quem realmente manda. Afinal, ao bonapartismo à brasileira não interessa alguém que se torne maior do que o projeto das elites. Este será o candidato perfeito e nele, os desavisados poderão identificar todas as qualidades para salvar o país. Mal sabem que se tratará de mais um Bonaparte a assombrar a história de nossa ainda frágil democracia.

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