Urariano Mota: Graciliano Ramos x Guimarães Rosa 

No blog de Luis Nassif, houve certa vez uma discussão que julgamos oportuno recuperar. A partir de um motivo remoto, nessas voltas e inesperados que ocorrem em todo blog, um participante comentou sobre Guimarães Rosa a pretexto de comentar sobre ecologia. E como um pretexto leva a outro, algo assim como, se queres ferir um homem, podes sempre dizer, “e por falar nisso”, para agredi-lo com um golpe na cara, de Guimarães Rosa atingiu-se Graciliano Ramos. Nos termos a seguir:

Por Urariano Mota* 

Guimarães Rosa e Graciliano Ramos - Dilvulgação

“O outro detalhe, é que o texto que reproduzirei abaixo (de Sagarana, que causou uma revolução na literatura brasileira, na década de 40), chegou a concorrer em um concurso público literário, presidido por um político alagoano comunista (não, não era o Aldo Rebelo, heheheh), o Graciliano Ramos. E o Graciliano ramos, então autor consagrado de Vidas Secas e são Bernardo, negou o 1º prêmio a Sagarana (Guimarães Rosa era apolítico, desconhecido e concorria sob o pseudonimo de Viamão). Por fundamentalismo ideológico-comunista, o Graciliano ramos passou por picareta, por ter sido incapaz de reconhecer o Guimarães Rosa no início de carreira!!! Teve que passar o resto da vida tentando justificar o injustificável. Morreu antes de poder ler a obra prima do gênio (herói, para os judeus), Grande Sertão Veredas. Ao contrário de Graciliano ramos, que fez questão de escrever Memórias do Cárcere e fazer propaganda de sua prisão política, Guimarães Rosa nunca mencionou o seu ato heróico na Alemanha nazista. Achava que era um assunto que não devia ser mencionado…”. Assim mesmo, creiam. Poderia ser dito que o pensamento conservador no Brasil já possuiu melhor nível e expressão. Ou mesmo que no parágrafo citado se confundem tempos, pessoas, obras e anticomunismo, mistura sempre indigesta, para o estômago e o pensamento. Mas vamos um pouco mais adiante. 

O fato é que diante de tais insultos, respondi o que se segue:

“O escritor a quem se chama de ‘político alagoano comunista’, certamente como uma progressão de graus depreciativos, a saber, político+alagoano+comunista, é na verdade um clássico da língua portuguesa, um escritor que recebeu de outro gênio, o romancista José Lins do Rego, a saudação de ‘o maior de todos nós’. Isso, note-se, numa época de grande criação da literatura brasileira, onde ‘apenas’ existiam Jorge Amado, o próprio José Lins, Raquel de Queirós, e outros menores, digamos.

O elogio a Guimarães Rosa não precisa ser feito à conta do desconhecimento sobre o homem e escritor Graciliano Ramos. Se o autor do comentário pesquisasse um pouco mais sobre esse ‘alagoano’, veria que Memórias do Cárcere é um monumento de inteireza moral, uma prosa densa e clássica, talvez a melhor obra de Graciliano. De passagem, conheceria um documento indispensável sobre as condições da repressão política na ditadura Vargas. E veria, ainda, os conflitos de um romancista com a linha política do Partido Comunista daqueles anos. Como o autor do comentário-insulto não conhece, rascunha algo como ‘Graciliano ramos, que fez questão de escrever Memórias do Cárcere e fazer propaganda de sua prisão política’….

Enfim, uma pesquisa mais atenta veria que o Sagarana apresentado ao concurso de contos presidido por Graciliano não foi o mesmo livro publicado muitos anos depois. Deixo a seguir as palavras do mestre de todos os escritores brasileiros, em linhas jamais contestadas por Guimarães Rosa:

’Em fim de 1944, Ildefonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa.

— O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.

— Como era o seu pseudônimo?

— Viator.

— Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.

Ildefonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada.

— Sabe que votei contra o seu livro?

— Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.

Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica. […]

Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal — Rio — 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance’. (Graciliano Ramos, na crônica Conversa de Bastidores)”

Poderíamos ter lembrado precedentes mais graves e ilustres que a rejeição a Sagarana. Como, por exemplo, a de André Gide aos originais de Em Busca do Tempo Perdido. Ou mesmo a de Lukács ao gênio fundamental de Kafka. Mas não poderíamos passar recibo à crença de que todas as recusas de obras-primas do mundo se reuniram para coroar a recusa de Graciliano Ramos a Guimarães Rosa. Nisso haveria um pouco de excesso, acreditamos. Sagarana deve ser um pouco menor que A Metamorfose ou Sodoma e Gomorra, devemos crer. Nos limites de nossa experiência, preferimos chamar a atenção para um livro e autor que cresceram anos depois da leitura honesta de Graciliano Ramos. Que se achava em posição impossível de melhor avaliação. Seria como, se nos permitem uma comparação plebeia, julgar Pelé o maior jogador do mundo quando ele possuía apenas 13 anos. Antes, portanto, que ele pudesse escrever obras mais belas que Sagarana. Ele, Pelé, queremos dizer. Com o devido respeito à glória de Guimarães Rosa, devemos acrescentar.

*Urariano Mota é escritor, jornalista e colaborador do Vermelho.