Sem categoria

Eclipsada por cúpulas e eleições, esquerda européia se transforma

Os recentes triunfos eleitorais da direita e a grande cobertura midiática da cúpula da União Européia eclipsaram dois acontecimentos relevantes na Alemanha e na Itália: a criação de um partido da Esquerda (Die Linke) em Berlim e a reunião de grupos comuni

Die Linke nasce como a fusão de duas correntes sócio-políticas de inspiração socialista e comunista encabeçadas por Oscar Lafontaine e Gregor Gysi, o primeiro um destacado ex-dirigente do partido social-democrata e o segundo ex-dirigente dos comunistas da República Democrática da Alemanha.



O assunto não seria de interesse se se tratasse de uma reunião de nostálgicos do velho socialismo ou uma associação de ressentidos sem maior representação social. Mas, muito pelo contrário, nas filas do primeiro se agrupam destacados dirigentes sociais e sindicais dissidentes do Partido Social Democrata (SPD) e nas do segundo as estruturas sobreviventes do ex-partido marxista da Alemanha Democrática, com fortes vínculos nos setores operários e com um núcleo intelectual muito sólido.



As pesquisas dão ao novo partido uma respeitável representação parlamentar, que poderia colocá-lo como a terceira força política no Bundestag, onde já contam com um grupo parlamentar próprio. O nervosismo nas filas da social-democracia alemã indica bem às claras como tomam a sério o surgimento desta agremiação política e eleitoral que nasce evocando as melhores tradições socialistas de Willy Brandt e o legado histórico dos grandes teóricos do marxismo que nessas terras tiveram os expoentes mais lúcidos, desde Marx e Engels até a teuto-polonesa Rosa Luxemburgo.



O mais destacável deste novo partido é seu caráter revolucionário, isto é, sua aposta sincera pela mudança radical do capitalismo e a construção de uma ordem socialista que supere os erros do passado e, sobretudo, que responda os desafios da atualidade. Fiéis à tradição do internacionalismo, o novo partido aposta sem reservas por dar vida nova à luta mundial contra o capital e se solidariza com os esforços gerais para enfrentar a guerra, a destruição do meio ambiente e uma globalização suicida, destacando-se o apoio aos movimentos nacionalistas do Terceiro Mundo como a maior expressão de combate contra o novo colonialismo.



Na Itália se reuniram várias organizações que restaram do antigo PCI, assim como múltiplos grupos de ações de cidadania de toda a península. Ante a decisão de ex-comunistas (agora social-democratas) e democratas-cristãos de fundar um partido similar ao Democrata dos EUA, aqueles que continuam comunistas e outros setores que continuam fiéis ao legado de Antonio Gramsci entendem que o espaço da esquerda está nas suas mãos e se deram a tarefa de repetir a experiência alemã.



Tampouco se trata aqui de um par de nostálgicos de velhas batalhas e menos de uma iniciativa como tantas outras que reúne um grupo de destacados intelectuais dispostos a deslumbrar com novas interpretações os clássicos. Esses comunistas têm grupo parlamentar, tomam parte da atual coalizão governante e sua presença em sindicatos, associações e iniciativas cidadãs não pode ser desdenhada. Sua decisão de permanecer ou retirar-se da coalizão que sustenta Romano Prodi pode propiciar a convocação de novas eleições, pela perda da escassa maioria parlamentar que sustenta o governo — como já ocorreu em diversas ocasiões — ou obirgar a coalizão a pactos vergonhosos com a direita, com o desgaste e o desprestígio que isso leva (como acontece agora com o SPD na Alemanha).



Da mesma foram que seus homólogos alemães, os que estimulam a iniciativa italiana tampouco se propõem a reformar o capitalismo ou converter-se em simples ''bons administradores'' do capital. Seu objetivo é superar o sistema e recolher as velhas bandeiras da emancipação humana; têm atrás de si a riquíssima experiência do comunismo italiano e uma base social sólida.



A esses dois acontecimentos se poderia agregar outro. Enquanto o Partido Socialista Francês não termina de sair de sua profunda crise, o Partido Comunista Francês renasce. Dado como morto no primeiro turno das recentes eleições, sai fortalecido do segundo turno e até consegue formar um grupo parlamentar próprio. Se se desse um processo similar aos dos dois anteriores, uma nova esquerda na França poderia incluir o tradicional PCF, grupos trotskistas e outros menores que no conjunto alcançariam uma representação parlamentar importante.



O espaço da contestação ao sistema já não está ocupado somenteo pelos movimentos sociais, que se destacam por sua enorme capacidade de mobilização, pelo frescor e espontaneidade de suas reivindicações e criatividade de seus métodos de luta.



Quando os jovens do Maio de 1968 se lançaram às ruas, a colocar tudo em dúvida, foram apoiados pelos trabalhadores e a revolta chegou às fábricas, paralisando a França. O panorama atual não é, lógico, o mesmo nem existe uma espécie de princípio metafísico que determine a necessidade inelutável de tais coincidências. Mas não deixa de ser muito interessante observar como dentro da aparente estabilidade política, que a hegemonia conservadora impõe no Velho Continente, se desenvolvem processos sociais e políticos inquietantes, que podem desembocar mais cedo que pensamos na convergência dos que buscam um mundo diferente e dos que, desde a experiência de suas lutas e erros do passado, não só pensam que outro mundo é possível mas que sustentam que é absolutamente indispensável.