Sem categoria

Para Belluzzo, crise evidencia debilidades da mão-invisível

O economista e professor titular aposentado da Unicamp, Luiz Gonzaga Belluzzo, defende, em artigo publicado pelo sítio Terra Magazine, que a crise atual dos EUA mostra que é preciso conter “a mula-sem-cabeça da finança desregulada”.

Para sustentar seu ponto de vista, Belluzzo traça um breve e didático histórico da evolução da economia norte-americana, até chegar aos anos 90 do século passado. Confira abaixo a íntegra do texto:



Os governos e a alta finança dos Estados Unidos



William Greider, o editor de economia da revista americana The Nation, pegou no nervo: a crise de “credibilidade” que ora desvaloriza os empréstimos imobiliários e seus derivativos não é fruto de malfeitorias isoladas, mas o resultado lógico do contubérnio entre governos lenientes e negócios espertos.



É gentileza semântica chamar esse arranjo (ou enrosco) de plutocracia. Devemos concordar com o escritor Kevin Phillips. No seu livro Wealth and Democracy ele sugere que, desde a Guerra Civil, sucessivas gerações de “barões ladrões” vêm conseguindo inocular seus desígnios pessoais na condução da vida pública americana.



O domínio dos negócios sobre o governo chegou ao ápice nos anos 20. Os Estados Unidos emergiram da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) como os credores do mundo e – dizem os crédulos – que o Banco Morgan transformou-se no braço financeiro da política de Washington. Vou contar a verdade: a política internacional americana transformou-se em um apêndice dos interesses financeiros do Morgan.



Os bancos americanos, sob a supremacia da Casa Morgan, comandaram os empréstimos destinados a garantir reservas em moeda forte para o plano de estabilização da Alemanha em 1924 e para a França em 1926. A partir daí, a praça financeira de Nova Iorque tornou-se o carro chefe da enxurrada de empréstimos baratos para a Europa e América Latina (inclusive para o Brasil). Isso sem contar os malucos da Bolsa que tomavam grana dos bancos para aplicar em ações da “nova economia” daquele tempo: aviação, radiofonia e energia elétrica. Os desfecho dessa brincadeira foi a catastrófica depressão de 1929 com seu séquito de desemprego, falências e destruição da riqueza.



A depressão dos anos 30 do século XX mobilizou as reservas democráticas do povo americano. Nos momentos de crise econômica e social, os assim chamados movimentos “populistas” cuidavam de produzir os anticorpos para impedir a falência generalizada dos órgãos devastados pela ganância virulenta do establishment financeiro e corporativo. O sobrinho de Theodore Roosevelt Franklin Delano – aquele que assumiu o governo do país quando a depressão de 1929 andava brava – tratou de salvar as grandes corporações e os bancos de seus próprios desvarios e preconceitos.



A débâcle financeira foi enfrentada com o Emergency Bank Bill de 9 de março de 1933 e pelo Glass-Steagall Act de junho do mesmo ano. Esses dois instrumentos legais permitiram um maior controle do Federal Reserve sobre o sistema bancário. Roosevelt facilitou o refinanciamento dos débitos das empresas, sobretudo da imensa massa de dívidas dos agricultores, estrangulados pela queda de preços. O New Deal utilizou a Reconstruction Finance Corporation, criada por Hoover em janeiro de 1932, para promover a reestruturação do sistema bancário e financeiro.



Em seu excelente trabalho sobre os anos 20 e 30, o professor Frederico Mazzuchelli mostra a importância das medidas de Roosevelt para o saneamento do sistema financeiro americano: impôs a separação entre os bancos comerciais e de investimento; criou a garantia de depósitos bancários; proibiu o pagamento de juros sobre depósitos à vista e estabeleceu tetos no pagamento de juros para os depósitos e prazo (o Regulamento Q sobreviveu até o 1965).



Os bancos relutaram em aceitar a forte intervenção do Estado no sistema financeiro. As medidas brecaram a corrida bancária e deram efetividade à execução de uma política de provimento de liquidez e de direcionamento do crédito, em beneficio da recuperação econômica. Diga-se que o grand monde financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act, no início dos anos 30. Foi também grande a resistência dos negócios do dinheiro às propostas de Keynes e de Dexter White, apresentadas em 1944 para reformar a arquitetura financeira internacional, feita em pedaços pela artilharia pesada da Grande Depressão.



Franklin Roosevelt acreditava nos mercados administrados e no controle do capitalismo. O New Deal era visto, naturalmente, com horror por J.P. “Jack” Morgan, o júnior. Em 1935, a multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda a bordo do Queen Mary, o desastrado herdeiro de John Pierpont, proclamou: “Todos os que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por anos para sustentar o governo”. A indignação popular quase incendiou o país.



O historiador Ron Chernow escreve em seu livro The House of Morgan que John Pierpont deixou de ser uma pessoa para tornar-se o símbolo político dos ricos e reacionários que se opunham à justiça social. Advogado formado em Harvard, o conselheiro legal de Roosevelt (mais tarde juiz da Suprema Corte), Felix Frankfurter, escreveu ao presidente: “Quando os homens mais proeminentes do mundo da finança escancaram atitudes moralmente obtusas e anti-sociais, chega-se à conclusão de que o verdadeiro inimigo do capital não é o comunismo, mas os capitalistas e sua corte de escribas e advogados”.



A Era Progressiva e o New Deal foram momentos de rebelião democrática e ascensão econômica das massas. Não há como negar que os newdealers estenderam sua influência até os anos 50 e 60, o período da “era dourada” do capitalismo. Desde Reagan, a alta finança voltou a ocupar uma posição de predomínio na hierarquia dos interesses que se digladiam no interior do Estado americano. É deste ponto de vista que devem ser analisadas as mudanças ocorridas no pensamento econômico e nas recomendações de política.



Nos 90, as proezas do capitalismo destrambelhado foram cantadas em prosa e verso. Nos Estados Unidos, a população remediada se comportou como sempre: tentou surfar na onda do enriquecimento fácil e ilimitado. Os tempos não podiam ser mais benfazejos para os vigaristas, encantadores de serpente, pitonisas e oráculos de todo o gênero.



A conversa mole de transparência e austeridade encobriu o movimento real das coisas: sob o véu da racionalidade econômica esgueirava-se a mão que iria promover a desvalorização da riqueza e colocar em risco a saúde do sistema financeiro americano. Os gênios da “nova economia” estão dispostos a utilizar quaisquer métodos para desqualificar as resistências aos seus anseios. Imobilizaram homens e mulheres nas teias do pensamento uniformizado e repetitivo: “não há alternativa”.



Os últimos acontecimentos protagonizados pelos mercados mostram que é preciso conter a mula-sem-cabeça da finança desregulada. Sob pena das economias nacionais e seus cidadãos serem atormentados periodicamente pelas tropelias da mão invisível.



Fonte: Terra Magazine