Auto da Compadecida

Escrito em 1955 e encenado, pela primeira vez, em 1956, o Auto da Compadecida consagrou Ariano Suassuna como escritor e autor teatral. Prosa Poesia e Arte transcreve, aqui, a cena final, do julgamento, onde a Compadecida (Nossa Senhora) é a advogada que se contrapõe ao Encourado (o demônio), ante o juiz Manoel (Jesus Cristo, que no auto é negro).

Por Ariano Suassuna

Auto da compadecida

JOÃO GRILO – Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (Recitando).

 
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
ENCOURADO – Vá vendo a falta de respeito, viu?
JOÃO GRILO – Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito!
 
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.
 
(Cena igual à da aparição de Nosso Senhor, e Nossa Senhora, a Compadecida, entra).
 
ENCOURADO [com raiva surda] – Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!
JOÃO GRILO – Falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se zangou com o verso que eu recitei?
A COMPADECIDA – Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo.
JOÃO GRILO – É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito.
A COMPADECIDA – É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.
ENCOURADO – Protesto.
MANUEL – Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou.
ENCOURADO – Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo.
SEVERINO – Você só fala assim porque nunca teve mãe.
JOÃO GRILO – É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira! 
A COMPADECIDA – E para que foi que você me chamou, João?
JOÃO GRILO – É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar com a senhora mesmo.
ENCOURADO – As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que há tempo não via tanta coisa ruim junta!.
A COMPADECIDA – Ouvi as acusações.
ENCOURADO – E então?
JOÃO GRILO – E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria! 
PADRE (ajoelhando-se – Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus.
JOÃO GRILO – Um momento, um momento. Antes de respondermos, lembrem-se de dizer, em vez de “agora e na hora de nossa morte”, “agora na hora de nossa morte”, porque do jeito que nós estamos, está tudo misturado.
TODOS – Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém.
A COMPADECIDA – Não precisava fazer a modificação, João. Eu entenderia.
JOÃO GRILO – É, a senhora eu acredito que entendesse, mas aquele sujeito ali, com muito menos do que isso, faz uma confusão.
A COMPADECIDA – Está bem, vou ver o que posso fazer.
JOÃO GRILO (ao Encourado) – Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa.
 
MANUEL – E eu, João? Estou esquecido nesse meio?
 
JOÃO GRILO – Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande. Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada [Ocorrendo-lhe a brincadeira]. Mas com toda desgraça, acho que sou menos ruim do que o sacristão.
A COMPADECIDA – Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os condene. 
MANUEL – Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político…
A COMPADECIDA – Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós é por nós.
MANUEL – O padre e o sacristão… [Gesto de desânimo].
A COMPADECIDA – É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador. Já com esses dois a acusação é pelo outro lado. É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo oque eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.
 
ENCOURADO – Medo? Medo de quê?
BISPO – Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte…
PADRE – Medo do sofrimento…
SACRISTÃO – Medo da fome…
PADEIRO – Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão.
MANUEL – E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!
A COMPADECIDA – Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do sofrimento.
JOÃO GRILO – Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou.
MANUEL – É verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei naquela noite.
A COMPADECIDA – Seja então compassivo com quem é fraco.
MANUEL – Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam com João Grilo e os outros empregados na padaria!
JOÃO GRILO – Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho.
MANUEL – Devia ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em favor deles?
A COMPADECIDA – O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos.
MANUEL – Isso pode se dizer em favor dele. Mas ela?
ENCOURADO – Enganava o marido com todo mundo.
MULHER – Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento, começou a me enganar. A senhora não sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor se paga.
A COMPADECIDA – Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo, se bem que não tenha do que me queixar, porque meu marido era o que se pode chamar um santo.
 
JOÃO GRILO – Grande novidade!
A COMPADECIDA – O que, João?
JOÃO GRILO – Falei não.
ENCOURADO – Falou, sim. Ele disse: “Grande novidade.”
A COMPADECIDA – Na verdade, João tem toda razão. Falei assim por falar, mas que São José era um santo, não é nenhuma novidade.
ENCOURADO – A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente sua proteção com esses nojentos, mas nada pôde dizer ainda em favor da mulher do padeiro.
A COMPADECIDA – Já aleguei sua condição de mulher, escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso alegar ainda em seu favor?
PADEIRO – A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais ofendido pelos atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela. Isso deve ter algum valor.
A COMPADECIDA – E tem. Alego isso em favor dos dois.
MANUEL – Está recebida a alegação.
A COMPADECIDA – Quanto a Severino e ao cabra dele…
MANUEL – Quanto a esses, deixe comigo. Estão ambos salvos. 
ENCOURADO – É um absurdo contra o qual…
MANUEL – Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende nada dos planos de Deus. Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir para ali. [Severino e o Cangaceiro abraçam os companheiros e saem para o céu.]
BISPO – E nós?
SACRISTÃO – Decida-se logo, por favor, porque essa ansiedade é pior do que qualquer outra coisa.
MANUEL – Não diga isso, você não sabe o que se passa lá. Qualquer ansiedade é melhor do que aquilo.
ENCOURADO – É, mas não posso ficar eternamente à espera. Qual é a sentença?
A COMPADECIDA – Um momento, meu filho. Antes de dizer qualquer coisa, não se esqueça de que o frade absolveu a todos condicionalmente e rezou por eles.
MANUEL – Pois não. Vou então proferir a sentença.
JOÃO GRILO – Um momento, senhor. Posso dar uma palavra?
MANUEL – Você o que é que acha, minha mãe?
A COMPADECIDA – Deixe João falar.
MANUEL – Fale, João.
JOÃO GRILO – Os cinco últimos lugares do purgatório estão desocupados?
MANUEL – Estão.
JOÃO GRILO – Pegue esses cinco camaradas e bote lá.
A COMPADECIDA – É uma boa solução, meu filho. Dá para eles pagarem o muito que fizeram e assegura a sua salvação.
JOÃO GRILO – E tem a vantagem de descontentar aquele camarada ali que é pior do que carne de cobra. Não está vendo ele ali, de costas?
MANUEL – Estou.
JOÃO GRILO – Isso é de ruim.
MANUEL – Minha mãe o que é que acha?
A COMPADECIDA – Eu ficaria muito satisfeita.
MANUEL – Então está concedido.
ENCOURADO – Não tem jeito não. Homem governado por mulher é sempre sem confiança!
MANUEL – Podem ir, vocês cinco. [Os cinco se despedem comovidamente de João Grilo].
 
JOÃO GRILO – Muito bem. Desmanchem essa cara de enterro e boa viagem para todos [Saem
todos
].
 
MANUEL – E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio para os outros e ficou de fora?
JOÃO GRILO – Porque, modéstia à parte, acho que meu caso é de salvação direta.
ENCOURADO – Era o que faltava! E a história que estava preparada para a mulher do padeiro?
MANUEL – É, João, aquilo foi grave.
JOÃO GRILO – E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando para o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, mão de Deus de Nazaré, já fu menino, fui homem…
A COMPADECIDA [sorrindo] – Só lhe falta ser mulher, João. Já sei. Vou ver o que posso fazer [a Manuel]. Lembre-se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu.
ENCOURADO – É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento.
A COMPADECIDA – João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.
JOÃO GRILO – Para o purgatório? Não, não faça isso assim não. [Chamando a Compadecida à parte]. Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA – Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?
JOÃO GRILO – Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada enrolando nós dois.
A COMPADECIDA – Deixe comigo. [a Manuel]. Peço-lhe então, muito simplesmente, que não condene João.
MANUEL – O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um limite. Afinal de contas, o mandamento existe e foi transgredido. 
A COMPADECIDA – Dê-lhe então outra oportunidade.
MANUEL – Como?
A COMPADECIDA – Deixe João voltar.
MANUEL – Você se dá por satisfeito?
JOÃO GRILO – Demais. Para mim é até melhor, porque daqui para lá eu tomo cuidado para a hora de morrer e não passo nem pelo purgatório, para não dar gosto ao cão.
A COMPADECIDA – Então fica satisfeito?
JOÃO GRILO – Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.
[O Encourado, furioso, volta-se para João, mas nesse momento, dá um grande grito, deita-se no chão e rasteja até onde está a Virgem para que ela lhe ponha o pé sobre a nuca (cf. Gênesis, 3, 15), saindo depois].
JOÃO GRILO – Que foi que ele teve, meu Deus?
A COMPADECIDA – Na raiva, virou-se para você e me viu.
 
JOÃO GRILO – Quer dizer que estou despachado, não é?
MANUEL – Não. Vou deixar que você volte, porque minha mãe me pediu, mas só deixo com uma condição.
JOÃO GRILO – Qual é?
MANUEL – Você me fazer uma pergunta a que eu não possa responder. Pode ser?
JOÃO GRILO – Está difícil.
MANUEL – É possível, você que é tão esperto?
JOÃO GRILO – Mais esperto do que eu é o senhor que me criou. Mas vou tentar sempre.
A COMPADECIDA – Isto, João. Tenha coragem, não desanime, que eu estou aqui, torcendo por você. 
 
JOÃO GRILO – Então estou garantido. Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está escrito lá assim mesmo?
MANUEL – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo trinta e dois. 
JOÃO GRILO – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
MANUEL – Sou não, João, sou católico.
JOÃO GRILO – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção, minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao mundo?
MANUEL – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai. 
JOÃO GRILO – Então deixe eu ir-me embora. Acredito que o senhor saiba, isso faz parte de sua vida íntima com o senhor seu Pai, mas o que o senhor disse foi que eu podia voltar se lhe fizesse uma pergunta a que o Senhor não pudesse responder.
A COMPADECIDA – É verdade, meu filho.
MANUEL – Eu sei, mas para que você não fique cheio de si, vou lhe confessar que já sabia que você ia-se sair bem. Minha mãe já tinha combinado tudo comigo, mas você estava precisado de levar uns apertos. Estava ficando muito saído.
JOÃO GRILO – Quer dizer que posso voltar?
MANUEL – Pode, João, vá com Deus.
JOÃO GRILO – Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu [Ajoelhando-se diante de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão]. Até à vista, grande advogada. Não me deixe de mão não, estou decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe que a carne é fraca.
A COMPADECIDA – Até à vista, João.
JOÃO GRILO [beijando a mão de Cristo]. Muito obrigado senhor. Até à vista.
MANUEL – Até à vista, João. [João bota o chapéu de palha velho e esburacado na cabeça e vai saindo].
 
MANUEL – João!
JOÃO GRILO – Senhor?
MANUEL – Veja como se porta.
JOÃO GRILO – Sim senhor [Sai de chapéu na mão, sério curvando-se].
 
MANUEL – Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona.
 
Do livro de Ariano Suassuna. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro, Agir, 2005