Osvaldo Bertolino: Boca da urna, militância versus mídia

Nestes poucos dias que restam antes do primeiro turno das eleições, o que se prenuncia é uma batalha de proporções épicas. O resultado terá grande influência na boca da urna. Para que a democracia saia vitoriosa, contudo, é preciso ter pleno conhecimento das armas do inimigo. No atual estágio da democracia brasileira, a principal arma desse inimigo chama-se mídia. Ou seja: o sistema de comunicação controlado com mão de ferro pela direita.

Por Osvaldo Bertolino*

As mentiras sobre a censura da mídia na Venezuela - Reprodução

Quem jacta-se de si mesmo pouco tem do que jactar-se. Nesta estupenda frase de Honoré de Balzac está contida toda a essência do comportamento falacioso da mídia nos dias atuais. A verdade é que existem muito mais coisas entre o céu — onde está a imaginação — e a terra — onde se vive a realidade — do que sonha a vã filosofia dos que subestimam o peso da monopolização dos meios de informação no destinos do país. Pelas melhores regras do que se considera ser a ciência política, pela sabedoria acumulada nas academias e até pelas experiências do passado, não cabe vacilação nessas horas cruciais que antecedem a votação do próximo dia 5 de outubro: a militância democrática e progressista tem a grande missão de desmascarar a mídia, o Departamento de Gerência de Falsidades e Mentiras da direita.

Trabalhando de maneira intensiva 24 horas dia, sete dias por semana, esse Departamento tem como meta fazer a candidata à reeleição Dilma Rousseff chegar ao segundo turno com a língua de fora. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) já avisou que o mais importante é derrotar “essa gente que está no governo”. “Não é só o PT não, essa gente que está no governo porque fizeram muita coisa errada no Brasil", sentenciou, repetindo Jorge Bornhausen (ex-oligarca do falido PFL), que falou em "exterminar essa raça", que por sua vez repetiu o barão de Cotegipe (um dos líderes do Partido Conservador, eleito senador pela Província da Bahia e presidente do Senado de 1882 a 1885) que se referiu às multidões entusiasmadas que assistiam às sessões do parlamento durante a votação da Abolição da Escravatura como "a raça libertada".

Truques de FHC

Em 2006, o Partido dos Trabalhadores (PT) entrou com queixa-crime contra FHC por ele ter difamado a sigla em declarações à mídia. Seria uma importante oportunidade para pôr um dos principais personagens da direita no seu devido lugar, o banco dos réus, mas o Ministério Público Federal, contaminado pelo veneno golpista que se instalara no país, arquivou o pedido. "A ética do PT é roubar", disse o ex-presidente, frase imediatamente elevada às capas e às chamadas da mídia. Tomado pelo sentimento de impunidade, FHC entrou no atual debate eleitoral atirando para todos os lados, abrindo a temporada de baixarias.

A calamitosa sequência de truques de FHC para vender suas falsidades, contudo, é uma prática que faz primeiro o sujeito perder a pose, depois o respeito e por fim qualquer condição de continuar falando em moral, ética e bons costumes. Para a corrente de pensamento do ex-presidente neoliberal, é natural que a mídia esteja acima do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Para eles, é bom ter alguém com poderes para invalidar leis que os parlamentos aprovam, inventar regras novas por conta própria e decidir o que a Constituição quis ou não quis dizer em cada artigo. Assim fica bem mais fácil criar manobras para retirar do eleitor — ou, no mínimo, reduzir pela metade — o seu direito de escolher os nomes das autoridades públicas.

Quando infratores do Código Penal — como FHC e a Veja — tentam dar o tom à atividade política do país, é preciso elevar a vigilância democrática. A mídia em geral tem se esmerado na prática de esconder informação, não dando a mais vaga ideia do que está acontecendo no país e transformando o que existe de pior — as propostas e a prática da direita — em um mundo róseo.

Alma da mídia

Cláudio Abramo, conceituado jornalista com ideias situadas à esquerda no espectro político e respeitável ícone do jornalismo brasileiro — ele conheceu as entranhas de jornais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo —, dizia que para ter democracia no Brasil é preciso começar fechando todas as TVs particulares. Os latifúndios de mídia, dizia ele, são as primeiras trincheiras usadas pelas classes dominantes em ocasiões de decisões políticas importantes para o país. Ele não fez uma tirada inconsequente — apenas disse o que acontece. Não porque achava, porque sabia.

Quem fez uma tirada que também merece ser lembrada foi o atual ministro da Defesa, Celso Amorim, quando estava à frente do Ministério das Relações Exteriores. Segundo ele, a mídia gastava rios de tinta, horas e horas de transmissão, largos espaços na internet e dedicava manchetes estrepitosas para sabotar a política externa do governo. "Preciso fazer psicanálise para entender (esse comportamento)", afirmou. Em depoimento na Comissão de Relações Exteriores do Senado, Amorim deixou o terreno da psicanálise, preferindo outras disciplinas para explicar as críticas feitas pela mídia. "Talvez fosse o caso de conversar com antropólogos e sociólogos, para que se detenham nessa necessidade de autoflagelação que existe no Brasil", afirmou.
Essas formulações, tão reveladoras da alma da mídia, dão uma compreensão mais exata do que ocorre nos dias atuais; a obcessão do noticiário é convencer os brasileiros a não outorgar à presidenta Dilma Rousseff, nas urnas, um segundo mandato e lhe acenar com um contundente adeus. Depois de protagonizar uma sucessão impressionante de episódios patéticos, com um denuncismo que mistura bravatas e foguetórios, degradando a palavra "escândalo" dada a miserável insignificância das “revelações”, eles partiram para a desqualificação da gestão do governo e da própria presidenta.

Moralismo e hipocrisia

Na Folha de S. Paulo da quinta-feira (2), o ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, o jornalista Thomas Traumann, escreveu que a manchete do jornal da segunda (29) — "Dilma não cumpriu 43% das promessas de 2010" — é exemplo de jornalismo superficial. “A reportagem tenta cumprir a louvável função de avaliar o cumprimento das metas do governo, mas se perde em falhas metodológicas, avaliações subjetivas e erros grosseiros”, afirmou. “O texto conclui que, se o Brasil fosse um colégio, a gestão da presidenta Dilma Rousseff teria ‘passado de ano raspando’. Por essa analogia, a Folha teria sido reprovada”, constatou.
A questão é que muito eleitores viram a manchete garrafal do jornal, exposto em muitos pontos de venda pelo país afora e na internet, mas não tomou conhecimento do desmentido do ministro. É possível que muitos desses cidadãos, desinformados pela Folha, tenham ficado com a sensação de que o episódio foi apenas mais um serviço prestado por uma imprensa comprometida com o seu destino. Eles tampouco saberão, se depender da mídia, que a proliferação de “denúncias” ocorre pelo simples e fundamental fato de que o Brasil entrou, no ciclo Lula-Dilma, em um cenário de reacomodação dos interesses de classes e podem cair na armadilha de imaginar que uma onda de moralidade despontou no horizonte. Moralismo e hipocrisia são conceitos fáceis de confundir.

O que existe, na verdade, é uma combinação quase macabra de interesses contrários ao governo. E sempre tem espaço para mais um; quem quiser ocupar os holofotes para jogar lama na presidenta tem espaço garantido. As suposições são imediatamente reproduzidas e cria-se um ambiente em que os acusados têm que provar que são inocentes. Contudo, em grande parte do eleitorado — possivelmente a maioria — a overdose de denúncias, acusações e condenações sumárias não cola mais. O leitor, ou telespectador, ou ouvinte — sempre a grande vítima — percebe que se vê às voltas com um retrato desfigurado da realidade.

Volta do Senhor

Para quem conhece bem essa prática, é difícil olhar para os jornalistas da mídia, que trabalham sob a camisa de força ideológica dos donos dos meios de comunicação, e não ter a sensação de que eles estão ali para nos enrolar. No caso da maioria dos grandes nomes desse tipo de "jornalismo", empoleirados em Brasília ou esparramados pelas redações e estúdios, é impossível não olhar para eles com um sentimento que intercala desconfiança e repúdio, revolta e indiferença. Paulo Francis, ícone do jornalismo conservador brasileiro, dizia que política é coisa de gentinha. Há, certamente, gentinha na política, mas há muito mais dela na mídia, imaginando ser gente grande.

No entender dessa gente, só se pode dizer que algum deles tem culpa, culpa mesmo, no dia do julgamento universal, quando o Senhor, finalmente, voltar — segundo os cristãos — acertar as nossas contas. Até lá, sugere-se que o público tenha paciência e continue a sorver cotidianamente as baboseiras que eles produzem. Não se trata, aparentemente, de algo que se possa resolver com o tempo. Na teoria, a atuação constante e paciente da democracia — com eleições, separação dos poderes e exercício da cidadania — vai, pouco a pouco, limpando a vida política, desenvolvendo um verdadeiro espírito público e separando o joio do trigo.

Na mídia brasileira, essa teoria funciona ao contrário: com o passar do tempo, as coisas pioram, em vez de melhorar. O joio vai sendo separado, sim, do trigo — só que o “mundo da informação” fica cada vez com mais joio. Eles ignoraram o povo, com o qual não consegue dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel anti-Dilma. A tática é deixar o eleitor sem entender patavina.

Oligarquias destronadas

Já se passaram 30 anos desde o último presidente militar, e 35 desde que o AI-5 foi revogado. É tempo mais que de sobra para aprender como funciona uma democracia. Mas o que se conseguiu de concreto nesses anos todos foi a realidade contraditória que existe hoje; de um lado, um governo apoiado pelas forças progressistas e de outro uma relativa força do condomínio de forças da direita que luta para golpear o progresso social e a democracia. Sem o poder que a mídia acumulou, sobretudo nos anos da ditadura militar, a democracia certamente já estaria em um patamar bem mais elevado.

A direita pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação'' — uma referência ao poderio das oligarquias destronadas pela Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente.

Grau de democracia

O abuso do poder, em qualquer época da história da humanidade, teve sempre ao seu lado a cumplicidade da mentira. No Brasil de hoje, não é aceitável que as mazelas de um esquema monetarista, tecnocrático, contrário aos interesses da nação, sejam atribuídas precisamente àqueles que buscam o fortalecimento das instituições democráticas capazes de dar ao povo brasileiro a independência econômica e a soberania política de que tanto o país necessita.

A terapia para isso não está na criação de tribunais de disciplina. Para delitos praticados por jornalistas há o Código Penal. E para os prejuízos que causam há as indenizações aplicadas pela Justiça, com frequência e valores maiores do que em geral se imagina — apesar de isso não ser nada para o poderio econômico dos grupos que controlam o setor. O que falta é meios reais para o julgamento público de seus atos. Só com esses meios o país terá uma imprensa com o grau de qualidade que corresponda à sua exigência — da mesma forma que os países verdadeiramente democráticos têm os governos que escolhem e merecem.

Esse grau de democracia, no entanto, só será possível quando for limitada a progressão cada vez mais veloz e mais agressiva do desrespeito à liberdade de expressão como prática regular para defender interesses restritos. A desconstrução dessa desordem na vida diária do país só será possível pela via política. A coragem e a clareza que o governo mostrou ao fixar as linhas básicas de sua conduta, e que produziram resultados notáveis, só será possível na comunicação com a efetiva entrada em cena das forças progressistas.

*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e colaborador da revista Princípios.