Um partido pode obrigar seu deputado a dar o golpe?

Às vésperas da reunião do Colégio Eleitoral que decidiria a sucessão do general João Baptista de Oliveira Figueiredo, o PDS, diante da debandada de votos de seus parlamentares para o candidato oposicionista, Tancredo Neves (PMDB), decidiu-se pelo fechamento de questão.

Por Maria Inês Nassif*, na Carta Maior

prática comum do regime militar.

Fechamento de questão em favor do impeachment foi inspirada em prática comum do regime militar.

Se colasse, Paulo Maluf, o candidato governista, se tornaria o presidente da República: o PDS tinha 356 dos 686 membros do Colégio Eleitoral, contra 330 de toda a oposição, mas uma boa parte deles já tinha debandado para o campo oposicionista. O fechamento de questão poderia reverter o quadro.

Esta foi a última de manobras sucessivas do ex-governador de São Paulo para conter a irreversível tendência ao fracasso. Em dezembro de 1984, todavia, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), respondendo a uma consulta do PMDB, decidiu que não cabia exigir fidelidade partidária aos membros do Colégio Eleitoral. A decisão consolidou a vitória do oposicionista Tancredo Neves – que provavelmente hoje revira no túmulo, assistindo as peripécias golpistas de seu neto, Aécio Neves.

O instituto da fidelidade partidária previa punições, que iam até a expulsão do partido, do parlamentar que votasse contra um fechamento de questão decidido pela bancada parlamentar ou pelas instâncias partidárias – e elas eram bastante submissas aos governos militares. Foi instituído pela Emenda Constitucional de número 1 – a Constituição de 1969 outorgada por uma Junta Militar, em 1969 – e reafirmado pela Emenda Constitucional número 11, de 1978.

Além da pressão direta sobre parlamentares, das ameaças de cassação de seus mandatos pelo AI-5 e do controle sobre as verbas para seus redutos eleitorais, a disciplina partidária era um dos instrumentos que mantinha a lealdade bovina da bancada governista aos presidentes-generais. Não por acaso, foi abolida pelo Congresso no dia 15 de maio de 1985, apenas dois meses da posse do primeiro governo civil pós-64.

Essa marca autoritária tornou quase um tabu entre os partidos políticos o recurso ao fechamento de questão. Até a decisão recente do Supremo Tribunal Federal de considerar o mandato parlamentar como do partido, não como do eleito, sequer haviam punições à prática de mudanças partidárias constantes. As questões relativas à disciplina partidária – onde se inclui a obediência a fechamentos de questão – foram sendo colocadas, pela Constituição e pela lei, como questões internas dos partidos.

Os estatutos de quase todos os partidos atuais preveem o fechamento de questão, mas está longe de ser uma regra no mundo político a cobrança de disciplina integrantes das legendas – exceto o PT que, no seu estatuto, obriga a obediência a decisões partidárias, desde que decorrentes de debates internos, e com ressalvas a questões de consciência.

A estratégia de direções dos partidos favoráveis ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, de forçarem o fechamento de questão a favor do impeachment, é inspirada na prática do regime militar – e, ironicamente, está sendo tirada do bolso do colete por políticos que desafiaram a fidelidade exigida pela ditadura e votaram contra o fechamento de questão que tornava obrigatório o voto dos deputados do PDS a Paulo. Os setores conservadores que formaram a dissidência e viabilizaram a eleição de Tancredo Neves usam hoje os mesmos instrumentos usados pela ditadura para deter a democratização do país. Desta vez, para dar o golpe.

Existem, todavia, alguns senões que podem destruir a legitimidade desses fechamentos de questão que teoricamente obrigam deputados do PP, do PTB, do PR, do PSD e eventualmente do PMDB a votarem favoravelmente ao impeachment. Um deles é a questão de consciência: alguma instância partidária tem o poder de obrigar um parlamentar a dar o golpe? Se um parlamentar contrariar a decisão do partido e votar contra o impeachment – ou simplesmente não comparecer à votação – poderá o partido golpista puni-lo por não querer participar de um ato que fere a soberania popular?

A própria minirreforma eleitoral e partidária, aprovada pelo Congresso em setembro do ano passado, abre outra possibilidade de contestação judicial de eventuais punições para parlamentares que desobedecerem o fechamento de questão em favor do impeachment. O artigo 22-A, inciso III, permite até que o mandatário saia do partido sem ser punido, caso haja “uma mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário”. Todos os partidos, sem exceção, em seus programas, defendem o regime democrático e a representação pelo voto. Ao abraçar a conspiração para desfechar um golpe institucional, e assim negar o direito de uma presidenta legitimamente eleita continuar no poder, as direções partidárias atentam contra a democracia e contra o voto – e contra os seus programas. Nada obriga seus parlamentares a cometerem o mesmo crime.

O estatuto do PP, em seu artigo 9o, por exemplo, diz que é vedado aos filiados do partido “atentar contra o exercício do direito de voto ou contra a normalidade das eleições”. Manter Dilma é garantir o exercício do direito do voto de 54 milhões de brasileiros. O programa do PMDB, aliás, é o mais é ferido com a tentativa de golpe institucional capitaneada pelos seus chefes, o vice-presidente da República, Michel Temer, e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Lá, está escrito que “é importante evitar retrocessos políticos, consolidar e aprofundar as conquistas democráticas”. E ressalta que “o compromisso fundamental do PMDB é com a democracia, princípio primordial e inarredável”. Se o partido não cumprir o que está escrito, qualquer peemedebista com mandato eletivo pode sair porta afora sem perder o mandato por causa disso. Ou pode ficar sem ser incomodado.