Thaís Guilherme: Obrigada, segurança!

O que eu vou contar aconteceu em pleno século 21. Estava em Santo Amaro, onde havia acabado de sair de uma entrevista ali próximo, procurava emprego e carregava comigo alguns currículos, aproveitei que estava no bairro e decidi passar no Senai Ary Torres, onde eu cheguei a fazer alguns cursos há uns anos atrás. Tinha interesse em fazer um outro, pois ainda acredito que os estudos são a melhor forma de não nos submetermos às migalhas a nós destinadas no dia a dia.

Por Thaís Guilherme*

Thaís Guilherme - Blog Literarua

Na porta havia uns cartazes com as informações dos cursos, onde dizia sobre as matrículas abertas, mensalidades e horários, nem foi preciso entrar. Ao lado da porta estava um segurança bem educado que me ofereceu ajuda, eu disse que não precisava, pois já havia encontrado o que procurava.
Mas logo lembrei que na mochila carregava os currículos ainda não entregues e achei uma boa ideia deixar um ali. Afinal, conheço e gosto da Instituição, tenho uma simpatia pelo seu Ary Torres, pelo que minha mãe comentava em casa, ele me parece ser uma grande pessoa, ela trabalhou para a família dele, o Ary filho era seu patrão.

Perguntei ao segurança se eu podia deixar com ele um dos currículos, ele bem simpático permitiu.

– Claro moça! Deixe aqui comigo, porque à tarde o rapaz responsável por isso sempre está ai, daí eu já entrego em mãos.

Agradeci a gentileza e virei às costas, por algum motivo eu estava segura e certa de um emprego ali, afinal, me preparei para as cobranças do mercado de trabalho e não deixo a desejar quanto a minha qualificação, graças a Deus minha mãe também acredita que os estudos são a melhor saída para as pessoas, principalmente para nós pobres, negros, periféricos, por “N” fatores que a história explica e o cotidiano também.

A minha “véia” não poupou esforços para dar uma boa formação a mim e aos meus irmãos. Com direito ao ensino médio em escolas públicas do centro. Acredite, as escolas do centro da cidade apesar de públicas são melhores que as dos bairros periféricos. Além dos cursos de informática, técnico de administração, gestão, espanhol, inglês e outras atividades culturais que complementa minha formação. E só ali no Senai eu já tinha duas formações, com direito a título de melhor nota do curso. É, eu tinha chances!

Dentro do ônibus voltando para a casa, recebi uma ligação, o número desconhecido fez meu coração acelerar, com tantos currículos entregues naquele dia, a ligação poderia ser o retorno de algum deles. O que de fato foi. Atendi e uma voz ansiosa dizia do outro lado.

– Ah, oi moça, eu sou rapaz que você acabou de entregar o currículo aqui no Senai, sabe? – Respondi que sim animada.

-Então, sabe o que é… Eu vim deixar ele aqui com as meninas, mas o seu currículo é muito chique, ai é de outra forma, quando eu peguei eu achei que era para outra coisa, faxina, limpeza sei lá… Vou deixar aqui, você passa e pega depois tá bom?! Vou deixar aqui!

Era o simpático segurança que havia pego meu currículo. Agradeci e desliguei.

Eu naquele momento não sabia se me alegrava com a admiração do currículo ou se ficava triste por ele achar que a minha única opção era a faxina ou limpeza, e isso sem ao menos me conhecer.

Quero frisar que o problema não é a profissão, afinal, minha mãe é empregada doméstica, e foi com o esforço desse trabalho que sustentou a casa, criou seus três filhos e nos deu educação – uma educação de primeira linha – e hoje ela finaliza o seu último semestre da faculdade de pedagogia, já pensando no curso de psicologia ano que vem, ela é meu orgulho.

Sem querer julgar pela aparência, mas sem ela não será possível compreender o meu espanto quanto a essa história, até porque, situações como essas ou parecidas acontecem provavelmente todos os dias. O homem era negro assim como eu!

Caramba! Será que conseguiram nos convencer que não podemos ir além de um trabalho operacional? Que uma mulher, pobre e negra só pode ser empregada ou faxineira? Que um homem pobre e negro só pode ser motorista ou segurança?

Já nos tiraram tanto: o acesso a uma boa educação, cultura, saúde e até mesmo a nossa autoestima.
Oh meu amigo segurança!

Gostaria apenas de um emprego querido, um emprego honesto, onde eu consiga mostrar o que eu sei e aprender aquilo que não sei. Um emprego.

Os pré-requisitos são simples, um emprego que não tire de mim a capacidade de sonhar, não me aliene, não me inferiorize, que me remunere o suficiente para pagar a mensalidade do meu tão sonhado e custoso curso de Direito, que me dê tempo para estudar, e o mais importante que não me julgue pela minha cor negra, meus cabelos cacheados, meu nariz achatado e meus lábios carnudos.
Um emprego que não me julgue pela minha ancestralidade, nossa rica ancestralidade.

Hoje, lembrando disso, me deu vontade de vê-lo novamente. Sei lá, conversar, talvez até tentar ajudar… Sei que a culpa não é dele. E para aqueles que não sentem na pele, não são atingidos pelo racismo, não saberão a dor dessa luta.

É como diz o poeta urbano Fernando Marinho em um de seus poemas:

“Vítima desse massacre triste, de quem não sente na pele, analisa de longe, julga e acha simples. E, conclui! Que racismo no Brasil, não existe!”.

Enfim, agradeço não ter dado certo no Senai e em nenhum outro lugar, hoje eu atuou na LiteraRUA. Trabalho com cultura, produção literária, literatura marginal, empreendedorismo, educação não formal, trabalho com arte!


Thaís em evento da Editora LiteraRUA
 

Lugar esse que além de atender as minhas expectativas de emprego dos sonhos, ainda me motiva e inspira me provando o tempo todo que, “Se a história é nossa, deixa que nóis escreve”. – Renan Inquérito.

Meu amigo segurança, se me permite um conselho: Empodera-te! E se não quer fazer, empodere tuas irmãs, filhas, mulheres, negras como eu, como nós.

Você não sabe o poder que tem. Obrigada Segurança!

Fonte: Blog LiteraRUA